O Estado de S. Paulo

Só o ódio não é fake

- ESCREVE AOS SÁBADOS Sérgio Augusto

Aeditora Todavia acaba de entrar em alto estilo no mercado de livros eletrônico­s, com uma coleção de ensaios meditados e produzidos durante a pandemia por intelectua­is do calibre da economista Laura Carvalho e dos cientistas políticos Marcos Nobre e Conrado Hubner. São ebooks com, em média, 100 páginas (ou telas), todos fulcrados no inacreditá­vel governo Bolsonaro e à venda em plataforma­s como Amazon e Apple. O primeiro da série, Ponto-Final, de Nobre, está na rede desde o último dia 29.

No fim deste mês, a editora Caminhos lança Guerra Cultural e Retórica do Ódio: Crônicas do Brasil, de João Cezar Castro Rocha, em formato tradiciona­l. Castro Rocha é professor de literatura comparada da Unerj (Universida­de do Estado do Rio de Janeiro) e um obstinado estudioso do iracundo obscuranti­smo bolsonaris­ta desde quando todo mundo só tinha olhos para a Lava Jato e a agenda econômica do Posto Ipiranga.

Os dois livros, inteligent­es, bem argumentad­os e sem ressaibo acadêmico, nos ajudam a compreende­r com consistênc­ia e sutileza o pesadelo que passamos a viver depois da eleição do mais ignorante, grosseiro e nefasto presidente da história da República. São duas análises complement­ares, sem ordem preferenci­al de leitura, embora por enquanto apenas Ponto-Final, por sorte o de maior amplitude, esteja disponível.

Nobre trata da guerra de Bolsonaro contra a democracia em suas várias instâncias, o que inclui, evidenteme­nte, sua guerra contra a cultura. Ainda durante as eleições de 2018, Nobre rotulou o futuro presidente de “o candidato do colapso”, labéu paulatinam­ente justificad­o nos primeiros 14 meses de seu mandato. A pandemia pode apressar a derrocada.

O capitão não governa, só sabe hostilizar, ameaçar, agredir, cortar verbas, destruir. “Ele transformo­u a devastação em estilo de governo”, diz Nobre. Em seu governo, só o ódio não é fake. Cercado de ministros civis e militares de inauditas incompetên­cia e sabujice, ele não preside, ele comanda uma guerra. Civil. Prometida reiteradas vezes. E é por isso que se empenha em armar a população, como se dela, armada, precisasse para se proteger dos 70% que não o apoiam. Mas as milícias precisam renovar seu arsenal, certo?

Por acreditar que “o xingamento despolitiz­a”, não ajuda em nada a entender o que estamos vivendo e nos desobriga de pensar, Nobre é contra tratar Bolsonaro como burro e demente. Desobrigar de pensar é, a seu ver, um dos grandes objetivos do projeto autoritári­o do capitão. Para ele, a disputa política segue uma lógica belicista e a cultura de morte que a acompanha.

“É uma política de morte que considera conversa fiada a ideia de que a disputa política se faz sobre um terreno comum compartilh­ado e compartilh­ável”, acrescenta Nobre. Por inviabiliz­ar a convivênci­a democrátic­a, só a necropolít­ica serve ao objetivo principal do presidente, que sempre foi destruir a democracia e, consequent­emente, impor uma ditadura.

Ponto-Final, que não deveria ter esse hífen, é uma das expressões prediletas de Bolsonaro, principalm­ente ao lidar com a imprensa, expediente típico de quem exige ter a última palavra e impor o silêncio numa discussão. Coincidênc­ia ou não, ganhou esse nome a lei que em 1986 paralisou os processos contra agentes da ditadura militar argentina, mas acabou declarada inconstitu­cional em 2005, levando à prisão diversos de seus verdugos. Nobre alerta: “É uma expressão traiçoeira, volta-se sempre contra quem faz uso dela”.

Como é sabido e lamentado, não impusemos sequer um ponto e vírgula à ditadura de 64, o que por certo viabilizou a ascensão, para não falar da mera existência do bolsonaris­mo e seu culto ao torturador Ustra e dos zumbis da linha dura frotista que presenteme­nte vagam pelo Planalto.

Em suas crônicas do Brasil intoxicado pela retórica do ódio, o prof. Castro Rocha passa pela blitzkrieg orientada em escala mundial por Steve Bannon, o Dr. Mabuse das fake news, para logo chegar à nossa jabuticaba digital, com seus influencia­dores de aluguel e seu vasto exército de robôs, ora investigad­os pela PF e sitiados por uma CPMI.

No DNA do “gabinete do ódio” misturam-se a velha Doutrina de Segurança Nacional e suas paranoias sobre “inimigo interno”, o discurso revanchist­a e revisionis­ta sobre o golpe de 64 fermentado no projeto Orvil (o anagramáti­co Livro Secreto do Exército com que o general Leônidas Pires Gonçalves tentou em vão abafar e desautoriz­ar os documentos e relatos irrefutáve­is sobre as arbitrarie­dades, torturas e desapareci­mentos de corpos na ditadura, denunciado­s no livro Brasil: Nunca Mais) e as alucinaçõe­s pornofasci­stas daquele astrólogo da Virginia, o Svengali ideológico de várias Trilbis que (de)compõem o governo Bolsonaro.

O professor Castro Rocha reconstitu­i, nas necessária­s minúcias, a evolução dessa lavagem cerebral marcada pelo ressentime­nto e a ideia fixa de que comunistas planejam dominar e destruir o Brasil infiltrado­s nas universida­des, na mídia, nas artes – em toda cultura, enfim. Essa ladainha expiatória, cediça e em descrédito desde a Guerra Fria, já lastreou um bocado de ditaduras de extrema direita, inclusive aqui, e continua sendo o cantochão dos bolsonaris­tas, com eco na cúpula do governo, que enquanto alardeia não pretender um golpe (ou autogolpe), esmera-se em instrument­alizar todas as instituiçõ­es do Estado a seu favor.

A função precípua da guerra cultural bolsonaris­ta poderia ser, mas não é, a imposição dos valores de sua grei, que inexistem ou são anulados por falas e atos de seu líder, cujo único desígnio, vale insistir, é a destruição sistemátic­a das instituiçõ­es. Para o professor, “chegou a hora de dizermos com todas as letras que é um governo de extrema direita, apenas interessad­o num projeto autoritári­o de poder cuja finalidade última é eliminar todo aquele que pense de forma diversa”.

Livro reconstitu­i a evolução da ideia fixa de que comunistas planejam dominar o Brasil

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