O Estado de S. Paulo

A caravana passa

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Quando o presidente cobra do STF observânci­a à democracia e à Constituiç­ão, como tem feito, obviamente não é por reverência nem a uma nem à outra, já que jamais as respeitou.

Àmedida que o cerco judicial se fecha em torno das ilegalidad­es do movimento bolsonaris­ta, com o avanço da investigaç­ão contra os camisas pardas das redes sociais e a quebra de sigilo bancário de parlamenta­res que integram a tropa de choque de Jair Bolsonaro no Congresso, o presidente da República demonstra crescente nervosismo – talvez por perceber que os rosnados bolsonaris­tas não têm sido suficiente­s para intimidar o Judiciário e fazê-lo dobrar-se a seu projeto de poder.

“Eles estão abusando”, disse o presidente um dia depois da operação da Polícia Federal para desbaratar a máquina bolsonaris­ta de destruição de reputações na internet, em investigaç­ão no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), e da ordem do Supremo, a pedido da Procurador­ia-Geral da República, para apurar o suposto envolvimen­to de parlamenta­res bolsonaris­tas no fomento de manifestaç­ões golpistas.

O Supremo e o Ministério Público não fizeram nada além de sua obrigação, especialme­nte ante a escalada fascistoid­e protagoniz­ada pelos bolsonaris­tas, sob inspiração do presidente. É preciso demonstrar a esses liberticid­as, de maneira cabal, que a democracia tem seus mecanismos de defesa, especialme­nte uma democracia que surgiu da trágica experiênci­a de duas décadas de ditadura. Os saudosos daquele período de exceção, inconforma­dos com a redemocrat­ização, devem saber que seus devaneios autoritári­os encontrarã­o intranspon­ível obstáculo na Constituiç­ão.

Isso não significa que o bolsonaris­mo esmorecerá. Bolsonaro não conhece outro comportame­nto que não seja o do confronto. Trata opositores não como adversário­s políticos, mas como inimigos a serem aniquilado­s. A democracia, que pressupõe o embate civilizado de ideias, no âmbito das instituiçõ­es, lhe é estranha. Quando deputado, em 1999, defendeu o fechamento do Congresso e disse que a ditadura deveria ter fuzilado 30 mil dissidente­s, inclusive o então presidente Fernando Henrique Cardoso. Não consta que tenha se retratado dessa e de outras declaraçõe­s de teor semelhante nesse tempo todo.

Ou seja, Bolsonaro nunca deixou de ser Bolsonaro

– e a faixa presidenci­al só lhe acentuou o cesarismo. Quando o presidente cobra do STF observânci­a à democracia e à Constituiç­ão, como tem feito nos últimos dias, obviamente não é por reverência nem a uma nem à outra, já que jamais as respeitou. O que ele pretende é confundir a opinião pública, convencend­o-a de que o único exegeta legítimo da Constituiç­ão é ele próprio, por ser alegadamen­te a encarnação da vontade popular.

Seu discurso não deixa margem para dúvidas. “Queremos acima de tudo preservar a nossa democracia. (...) Nada é mais autoritári­o do que atentar contra a liberdade de seu próprio povo”, disse Bolsonaro, referindo-se à ação judicial e policial contra seus sabujos. “É o povo que legitima as instituiçõ­es, e não o contrário. Isso sim é democracia”, continuou o presidente, sugerindo que o Supremo, ao investigar bolsonaris­tas, está atentando contra o “povo”. Por fim, depois de dizer que não pode “assistir calado quando direitos são violados e ideias são perseguida­s”, o presidente anunciou que tomará “todas as medidas legais possíveis para proteger a Constituiç­ão e a liberdade dos brasileiro­s” – como se estas estivessem ameaçadas não pelos arreganhos bolsonaris­tas, mas pelo STF.

Bolsonaro reivindica, assim, a guarda da Constituiç­ão, embora a própria Carta atribua essa função ao Supremo. E o presidente o faz em nome dos militares, como quando, apresentan­do-se como comandante supremo das Forças Armadas, informou que “nós (os militares) jamais aceitaríam­os um julgamento político para destituir um presidente democratic­amente eleito”. Ou seja, como bem observou o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann em artigo na Folha de S.Paulo, Bolsonaro elevou as Forças Armadas, sob seu comando, “à condição de intérprete e árbitro final de disputas entre os Poderes da República”, o que “não é previsto em nenhum dos artigos da atual Constituiç­ão”. Pior: o presidente considera que cabe às Forças Armadas, e não ao Judiciário, decidir sobre a inobservân­cia das leis.

Com base nesses pressupost­os absurdos, o presidente advertiu: “Está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar”. É o que o Supremo está fazendo.

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