O Estado de S. Paulo

SPIKE LEE REVÊ OS NEGROS NO VIETNÃ

Destacamen­to Blood traz a guerra sob ótica racial.

- Luiz Zanin Oricchio

O projeto era anterior, mas Destacamen­to Blood, novo “joint” de Spike Lee, chega à Netflix em pleno calor das manifestaç­ões antirracis­tas provocadas pelo assassinat­o de George Floyd nos EUA.

Em Destacamen­to Blood, tratase, nada menos, que reavaliar um dos aspectos “esquecidos” da questão racial norte-americana, a que se refere à participaç­ão dos negros na Guerra do Vietnã. Há aí uma flagrante desproporç­ão numérica. Embora apenas 12% da população norte-americana seja negra, cerca de 1/3 do contingent­e mandado para a luta no sudeste asiático era composto por soldados afro-americanos. Ou seja, foi a parte da população preferenci­almente escolhida para servir de bucha de canhão numa guerra imperialis­ta sem sentido e que, afinal, terminou em derrota.

Essa realidade é pouco estudada e, sobretudo, pouco retratada numa filmografi­a que privilegia heróis brancos e improvávei­s como Rambo e Chuck Norris.

A estratégia de Spike Lee ao abordar esse tema “esquecido” da História é múltipla e imaginativ­a. Mostra o reencontro de antigos companheir­os do tal Destacamen­to Blood, reunidos para um projeto comum. Depois de 50 anos, retornam ao cenário da guerra por dois motivos bem distintos – tentar resgatar os restos mortais de um companheir­o morto em combate. E, também, reencontra­r um tesouro em barras de ouro que lá deixaram enterrado.

À maneira de Spike Lee, o filme se constrói em montagem bastante forte, que mescla a história ficcional a material de arquivo. Por exemplo, começa com uma fala do pugilista Muhammad Ali explicando por que se recusou a lutar no Vietnã (apenas para lembrar: Ali foi punido com a perda do título de campeão mundial, que só viria a recuperar tempos depois). Outras figuras essenciais da luta antirracis­ta aparecem, como a ativista Angela Davis e os líderes Malcolm X e Martin Luther King, ambos assassinad­os.

Lee também entra em diálogo com o próprio cinema em citações alusivas a filmes como Tesouro de Sierra Madre (John Huston), Greed – Ouro e Maldição (Erich von Stroheim) e Apocalypse Now (Francis Ford Coppola). Os dois primeiros são clássicos sobre a ambição que leva à loucura e ao crime. O terceiro é sobre a demência da própria guerra, inspirado numa obra-prima sobre a exploração colonial, O Coração das Trevas, de Joseph Conrad.

Com esse denso material de referência, Lee oferece várias camadas de sentido a esse reencontro entre amigos. Estão lá pela simbologia do luto, que implica repatriar restos mortais de um companheir­o que, além de líder do destacamen­to, era uma referência para todos eles. Depois, recuperar o butim que resolveria os problemas econômicos de todos eles. Vale dizer que os dois propósitos não se somam, a generosida­de de um e o interesse egoístico de outro quase se contradize­m.

Há também uma assimetria radical dentro do grupo. Um deles, o mais problemáti­co, votou em Donald Trump para presidente. Usa, orgulhosam­ente, o boné com a inscrição Make America Great Again (Faça a América grande de novo). Divisa do nacionalis­mo populista, tosco,

LEE DIALOGA COM O PRÓPRIO CINEMA EM CITAÇÕES A FILMES COMO ‘APOCALYPSE NOW’

antiglobal­ista e intervenci­onista, marca registrada de Trump, e que encontrou ressonânci­a entre os ressentido­s do eleitorado norte-americano.

Há então essa fricção interna no grupo heterogêne­o formado por Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Melvin (Isiah Whitlock Jr.) e Eddie (Norm Lewis). O herói morto, referência do pelotão, e que aparece como “fantasma” ao longo da trama, é ‘Stormin’ Norman (Chadwick Boseman, de Pantera Negra). Os quatro sobreviven­tes se encontram num hotel da cidade de Ho Chi Minh (exSaigon), no Vietnã, e partem para a aventura.

Spike Lee vem trabalhand­o a questão racial nos Estados Unidos como viga mestra de sua carreira, de sua estreia com Faça a Coisa Certa, passando por Febre da Selva, A Hora do Show, Infiltrado na Klan até este Destacamen­to Blood. De maneira geral, acerta nesse trabalho de contestaçã­o de um racismo estrutural, que, apesar de tantas lutas, lá existe e persiste, como existe aqui no Brasil. Volta e meia ele explode, com aconteceu em Charlottes­ville (incorporad­o em Infiltrado na Klan) e na morte de George Floyd, asfixiado por um policial branco (dialogando, a posteriori, com este Destacamen­to Blood).

A sintonia com a chaga do racismo estrutural joga a favor do filme. No entanto, nem sempre o conjunto funciona bem do ponto de vista da construção narrativa. Algumas escolhas de Lee são interessan­tes – como usar os mesmos atores para representa­r os personagen­s tanto no tempo atual como quando eram jovens soldados no Vietnã. Essa dissonânci­a causa efeito interessan­te e é marca de ousadia. No entanto, a trilha sonora, maravilhos­a quando usa a música de Marvin Gaye, às vezes se torna solene e opressiva, dando tom envelhecid­o a uma obra que se quer inovadora.

Há questões de roteiro, também, como nos excessos folhetines­cos que passam a dominar a trama quando os ex-soldados se encontram com uma ONG francesa de desarmamen­to de minas em plena selva vietnamita. As cenas de ação parecem às vezes exageradas quando não dispensáve­is. Assim como a atuação de Delroy Lindo, elogiada por muitos críticos, flerta com o overacting. Em especial quando emula um alucinado Coronel Kurtz, personagem de Marlon Brando em Apocalypse Now. O retrato que faz dos vietnamita­s soa bastante estereotip­ado, derrapada fatal numa obra antirracis­ta.

É possível que essas falhas passem despercebi­das tamanho o sentido de urgência que o filme ganha com este momento histórico, sob a palavra de ordem Black Lives Matter. Mas, apesar desse senso acidental de oportunida­de, que o põe em ressonânci­a com a vaga mundial antirracis­ta, cabe registrar que Destacamen­to Blood não é exatamente o melhor Spike Lee. Longe disso.

 ?? NETFLIX/EFE ?? Retorno. Grupo volta para resgatar restos mortais de um companheir­o morto em combate
Retorno. Grupo volta para resgatar restos mortais de um companheir­o morto em combate
NETFLIX/EFE Retorno. Grupo volta para resgatar restos mortais de um companheir­o morto em combate Retorno. Grupo volta para resgatar restos mortais de um companheir­o morto em combate
 ?? ANDRE D. WAGNER/NYT ?? Spike Lee. Diretor trabalha a questão racial nos EUA desde o início de sua carreira
ANDRE D. WAGNER/NYT Spike Lee. Diretor trabalha a questão racial nos EUA desde o início de sua carreira

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil