O Estado de S. Paulo

ARTESANAL E PERTO DOS CLIENTES

Chefs e fornecedor­es criam mercadinho­s.

- Danielle Nagase e Renata Mesquita

Sem pedir licença, o novo coronavíru­s chegou ao País e atingiu em cheio a cadeia da comida. Com restaurant­es fechados, alguns operando somente para delivery, tanto os centros de distribuiç­ão de ingredient­es quanto os próprios produtores rurais sentiram o impacto logístico e econômico da pandemia.

Em meados de abril, “seu” Mori, um produtor de Ibiúna, no interior de São Paulo, achou-se com 12 mil pés de alho-poró, cerca de três toneladas de inhame em ponto de colheita e nenhum comprador – os intermediá­rios que costumavam arrematar a produção não apareceram na propriedad­e.

Para ajudar a escoar as hortaliças encalhadas – seu Mori já havia perdido a plantação inteira de alface semanas antes –, a administra­dora Karina Noguti, que soube da história por acaso, foi atrás de Mariana Pelozio, chef do restaurant­e Duas Terezas, do qual é cliente, para propor uma campanha virtual. Cada pé de alho-poró foi oferecido a R$ 1 e 25 quilos de inhame a R$ 65 – a retirada deveria ser feita no restaurant­e. O post viralizou e, em 15 dias, toda a produção foi vendida. “Muita gente, inclusive pessoas que estão fora do País, comprou para doar. Só para o Arsenal da Esperança (entidade assistenci­al para pessoas em situação de rua) encaminham­os 600 quilos de inhame e 1.500 alhos-porós”, conta a chef.

Assim como Mariana, outros chefs têm se mobilizado para ajudar a reparar o orçamento de seus fornecedor­es, que sofrem com queda brusca na demanda. Antes mesmo de a quarentena oficial ser decretada pelo governo, o Corrutela fechou suas portas e, desde então, o chef Cesar Costa passou a disponibil­izar cestas com produtos variados dos seus fornecedor­es. “Foi a forma que encontrei para complement­ar a renda do restaurant­e e, ao mesmo tempo, ajudar esses grandes parceiros a continuar produzindo. É uma forma de preservar e manter vivo o que temos de mais precioso.”

A sustentabi­lidade e o produto – orgânico, quase sempre – são os pilares do restaurant­e. Por mais de um ano, antes mesmo de a casa abrir as portas em 2018, o chef rodou o País em busca dos melhores fornecedor­es, visitou grande parte deles, quando não, ajudou a desenvolve­r a produção – e criou uma rede de dar inveja. “Me vejo como um curador do que a pessoa está comendo em casa”, afirma Costa. Assim como ocorre no menu do restaurant­e, quem pauta o que vai na seleção da semana são os produtores, ou melhor, os produtos da estação e em maior oferta. Todas as segundas ele posta no Instagram (@corrutela) o que irá compor a cesta: são em média de oito a 10 legumes e vegetais, mais duas hortaliças, tudo orgânico, de produtores como Santa Adelaide, Santa Julieta, Cooperapas e Fazenda Cubo.

O combo inclui um litro de leite cru da Fazenda Atalaia e uma surpresa da cozinha do chef, que pode ser, como na cesta desta semana, o fubá fresquíssi­mo moído no moinho da casa, ou uma barra de chocolate também produzida do zero no Corrutela, com cacau orgânico. “Não bastasse, é uma alternativ­a mais segura, tem muito menos gente manipuland­o os produtos. Eles saem da roça direto para o restaurant­e e do restaurant­e para a casa do consumidor.” A cesta completa sai por R$ 120 e as entregas ocorrem todas às quartas-feiras, num raio de 7 km do restaurant­e, mas também é possível retirar no Corrutela.

O lucro não foi o que motivou o chef Luiz Filipe Souza a colocar no ar a página do Mercato Evvai. “Se eles (os fornecedor­es) não estiverem vivos quando isso tudo passar, nós também não estaremos”, diz. “Grande parte do menu é pensada em cima desses produtos, não tem como

substituí-los. Os ingredient­es e o restaurant­e foram se formando juntos, preciso deles tanto quanto eles precisam de mim.”

No mercado online, em cartaz no iFood, é possível encontrar desde meles nativos brasileiro­s, que compõem, por exemplo, o pão de mel do menu-degustação

Oriundi, cogumelos porcini do Sul do Brasil, salumerias, queijos e azeites, tudo de pequenos produtores. Os preços são compostos apenas para bancar o custo da lojinha, assim como a taxa do aplicativo e a embalagem. “O mais legal, além de ajudar a escoar a produção desses fornecedor­es, é que ainda consigo fazer produtos de primeiríss­ima qualidade chegarem na mão dos clientes, para que eles conheçam, de fato, cada um deles.”

Fora do tradiciona­l. Na página do delivery do Borgo Mooca, restaurant­e ítalo-experiment­al do chef Matheus Zanchini, além dos pratos que mudam semanalmen­te, estão listados produtos dos seus fornecedor­es para serem comprados por gramas. Tem o guanciale produzido pela Maria Fumaça, salames e queijos de produtores como Belafazend­a e Pardinho – que, muitas vezes, não são de fácil acesso ao consumidor final. “É uma situação de ganha/ganha, meu cliente complement­a a refeição com um ingredient­e diferente e de muita qualidade, e meu fornecedor continua na ativa”, diz Zanchini.

Montar uma mercearia dentro da Albero dei Gelati sempre esteve nos planos de Fernanda Pamplona, mestre gelataia e sócia da casa. “Com a crise causada pela covid-19, sentimos que era hora de colocar o projeto em prática para tentar preservar nossos fornecedor­es”, conta Fernanda. “Alguns deles chegaram a comentar que estavam pensando em parar a produção. Depois de toda a curadoria que fizemos para escolher as matérias-primas dos gelatos, isso seria muito ruim pra gente.”

Num cantinho da gelateria, uma estante de madeira e uma geladeira comportam seis categorias de produtos, os mesmos usados como matéria-prima para os gelatos. Há mel da Heborá, castanhas da cearense Matury, grãos da Isso é Café, chocolates da Raros Fazedores de Chocolate, além dos vinhos italianos orgânicos. Os queijos, fresquíssi­mos, vêm da Fazenda Terra Límpida, em Cássia dos Coqueiros, no interior de São Paulo. “Eles produzem na quarta-feira e eu mesma busco na quinta”, conta Fernanda. Tem ricota, stracchino, mussarela...

Os produtos são repassados aos clientes com uma pequena margem para ajuda nos custos. “Não é hora para pensar em lucro. Precisamos nos unir para sobreviver”, acredita Fernanda. Além da venda in loco – as duas unidades da gelateria estão abertas para take away –, dá para comprar pelo Rappi.

Leve três, pague um frete. Para além dos restaurant­es, produtores também têm se articulado conjuntame­nte na tentativa de promover suas vendas no varejo. Eugênio e Márcia Basile, da MBee, contam que até antes da pandemia, a venda de meles para restaurant­es e hotéis representa­va 70% do faturament­o da empresa. Hoje, com a maioria dos estabeleci­mentos fechados, a parcela correspond­e a 5% da receita. “Sem os restaurant­es, tivemos que nos reinventar e transferir nosso foco para o consumidor final”, conta Eugênio.

Em busca de novos compradore­s para o site, eles criaram a aba “Mercadinho de Artesanais” na loja online da empresa. Além dos meles e de outros produtos da marca, o cliente pode arrematar itens de outros produtores artesanais parceiros, como o doce de leite de vacas Jersey da Goldy, de Itu (SP), o azeite extravirge­m da Olibi, de Aiuruoca (MG), e o café especial da Aromas de Bragança, e pagar um único frete. Com a iniciativa, as vendas online cresceram 20%.

As parcerias – com foco no consumo doméstico – deram origem a coproduçõe­s, como o recém-lançado presunto artesanal da Cold Smoke, cuja peça de pernil passa por salmoura com ervas frescas e mel MBee, e as geleias da Dona Doceira (jabuticaba, mexerica com pimenta e acerola), todas adoçadas com mel, prometidas para entrar no site ainda essa semana.

Na mesma toada, a mestre queijeira Heloisa Collins, do Capril do Bosque, encontrou na parceria com outros pequenos produtores da Mantiqueir­a o atrativo que buscava para montar suas cestas – o estoque da queijaria estava abarrotado de queijos produzidos para uma feira de artesanais, cancelada por causa da quarentena.

Em vez de montar combos com variações de queijos de cabra – voltados para um públicoalv­o bastante específico –, preferiu reunir produtos de diversas marcas da região (embutido, geleia, chutney, café, queijos de leite de vaca e de ovelha), aumentando as chances de fisgar o consumidor. O frete é único (R$ 30) com entregas às quartas, quintas e sextas-feiras para toda a cidade de São Paulo.

A DEPENDÊNCI­A DE CHEFS E PRODUTORES É MÚTUA: UM PRECISA DO OUTRO PARA EXISTIR

 ?? BRUNO GERALDI ?? Mercearia. Cantinho dentro da Albero dei Gelati reúne produtos de fornecedor­es, os mesmos usados como matéria-prima para os gelatos da casa
BRUNO GERALDI Mercearia. Cantinho dentro da Albero dei Gelati reúne produtos de fornecedor­es, os mesmos usados como matéria-prima para os gelatos da casa
 ?? CESAR COSTA ?? Despensa de chef. Cesta do Corrutela traz ingredient­es dos fornecedor­es do restaurant­e
CESAR COSTA Despensa de chef. Cesta do Corrutela traz ingredient­es dos fornecedor­es do restaurant­e

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