O Estado de S. Paulo

William Waack

- WILLIAM WAACK

O governo está na defensiva contra um adversário, o STF, que se sente jogando em casa.

“Bola no chão”, disse o general Hamilton Mourão, o porta-voz político do time dos militares no governo, referindo-se ao enfrentame­nto entre Executivo e Judiciário, a questão mais relevante e perigosa no momento. Ao sugerir como tratá-la, o general recorreu a uma frase da folclórica figura de Neném Prancha (1906-1976), que foi roupeiro, massagista, técnico e filósofo do futebol brasileiro: “A bola é de couro, o couro vem da vaca, a vaca come a grama, então bola no chão”.

Mas também o time do outro lado, o do STF, parece ter adotado uma frase de outra figura folclórica do futebol brasileiro, a do técnico Zezé Moreira (19071998), que assim descrevia a vantagem de jogar em casa mesmo contra equipes considerad­as muito mais fortes: “Lá em casa até boi vira vaca”. De fato, o STF está jogando em casa. E no ataque.

Não se trata apenas da questão dos inquéritos que o Supremo dirige e que são clássicos do “follow the money” para chegar a quem organizou e financiou ações contra instituiçõ­es democrátic­as – a principal razão do nervosismo no Planalto. Nem do formidável arsenal de medidas com o qual o STF já vinha impondo limites ao Executivo, muito evidente quando o Judiciário definiu o papel dos entes da Federação na crise de saúde.

Ministros do Supremo, articulado­s a uma vasta comunidade de operadores no campo do Direito (acadêmicos, advogados, juízes, procurador­es), derrubaram com notável rapidez uma interpreta­ção do artigo 142 da Constituiç­ão favorável a colocar as Forças Armadas como uma espécie de “poder moderador” entre os Poderes. “Isso é terraplani­smo constituci­onal”, resumiu o ministro Luís Barroso, trazendo a filosofia de Neném Prancha para o campo jurídico. Em outras palavras, sumiu a justificat­iva “técnica” ou “constituci­onal” ou “legal” para qualquer intervençã­o política das Forças Armadas.

Pior ainda para o time do Planalto: o do STF ganhou um reforço consideráv­el com a postura do procurador-geral da República – que o presidente tinha constrangi­do em público, obrigando Augusto Aras não só a ser “técnico” nas suas ações, mas a parecer ser. E ser “técnico” neste âmbito significa que a PGR e o STF tocam juntos os inquéritos que tanto irritam o Planalto e os militares.

Em termos das personalid­ades envolvidas na disputa, talvez a expressão mais eloquente da grave tensão entre os poderes Judiciário e Executivo esteja na evolução das posturas do presidente do Supremo, Dias Toffoli, e do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, considerad­o entre seus pares como uma brilhante cabeça política. Então chefe do Estado-Maior do Exército, Azevedo foi deslocado em 2018 para ser o principal assessor de Toffoli, que havia acabado de assumir a presidênci­a do STF.

Naquela época, a ideia era promover um esforço conjunto (militares e juízes) para pacificar um delicado ambiente pré-eleitoral. Hoje, Toffoli enxerga “dubiedade” nas posturas do chefe do Executivo frente às instituiçõ­es democrátic­as. Enquanto seu ex-assessor, atual ministro da Defesa, assina uma nota com o presidente da República e seu vice afirmando que as Forças Armadas “não aceitam a tomada do poder por outro Poder por conta de julgamento­s políticos” – referência também aos inquéritos do STF, da PGR e do TSE, vistos no Planalto como ferramenta política para derrubar um governo eleito com 57 milhões de votos.

A natureza, o alcance e a profundida­de das crises de saúde pública e econômica acuariam por si qualquer governo brasileiro, mas o de Bolsonaro se empenhou em agravar também a crise política, com o resultado de ter de jogar na defesa nas três. Neném Prancha definia o futebol como um jogo muito simples: “Quem tem a bola ataca, quem não tem, defende”. A bola está com o STF.

O governo está na defensiva contra um adversário que se sente jogando em casa

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