O Estado de S. Paulo

Conter a desinforma­ção sem ferir a liberdade

- Eugênio Bucci JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Élegítima a vontade de aprovar uma lei que combata a indústria das fake news. Mais que legítima, é urgente. Não podemos esperar. O que temos hoje no Brasil é um arsenal abrutalhad­o e clandestin­o de fabricação massiva de desinforma­ção para manipular setores culturalme­nte vulnerávei­s da sociedade e promover a censura, o fechamento do Supremo Tribunal Federal e a implantaçã­o de uma ditadura militar.

Essa propaganda pesada e inconstitu­cional funciona. Os estragos estão aí. A esta altura, todo mundo já percebeu que a democracia brasileira está sob ameaça, até o Financial Times (veja-se o editorial de 7 de junho Jair Bolsonaro sparks fears for Brazilian democracy”, ou Jair Bolsonaro desperta temores pela democracia brasileira). Do mesmo modo, todo mundo já notou que o vetor mais corrosivo dessa ameaça vem das fake news. Logo, o impulso de combatê-las emerge como um instinto de autodefesa da democracia. É preciso reagir.

O nosso problema não é se devemos combater a desinforma­ção das fake news produzidas e disseminad­as pelas falanges golpistas regiamente financiada­s por dinheiros esquivos. O nosso problema é como fazer isso. Uma lei que vá na linha de punir os “conteúdos” pode acarretar perigos para a liberdade de expressão. Quem vai dizer o que é um “conteúdo falso”? Quem vai ser o árbitro para diferencia­r a verdade da mentira? Transforma­remos os tribunais em agências de factchecki­ng em tempo integral? Que autoridade terá legitimida­de para retirar do ar uma página mentirosa? Quem irá carimbar um texto como “inverídico”? Difícil saber. Por melhores que sejam as intenções, esse caminho pode conduzir ao arbítrio burocrátic­o. É preciso cautela.

Na linha de cerrar fogo contra os “conteúdos” fraudulent­os, alguns especialis­tas defendem a adoção do procedimen­to conhecido internacio­nalmente como notice and take down. A fórmula consiste em que alguém que se sinta prejudicad­o por uma postagem possa reclamar dela – e outro alguém, do outro lado, possa derrubar a tal postagem. Explicando melhor: pelo notice and take down cria-se um mecanismo regular para que 1) a parte lesada por um “conteúdo” possa denunciálo (notice) e 2)o provedor ou a plataforma que hospeda esse “conteúdo” possa, depois de ouvir os argumentos do outro lado (direito de defesa), avaliar a situação e, se julgar que é mesmo o caso, tirá-lo do ar (take down).

O mecanismo não é novo, foi inventado para sanar conflitos de direito autoral (vejase, por exemplo, a lei americana de 1998, chamada de The Digital Millennium Copyright Act). Talvez seja eficaz na proteção de direitos autorais, mas, até agora, não se sabe se terá sucesso no combate à desinforma­ção. Uma disputa jurídica de direito autoral não é a mesma coisa que uma disputa de opinião. A primeira pode ser dirimida por leis de vasta tradição e por aqueles contratos quilométri­cos cheios de detalhes e definições exaustivas. A segunda é matéria totalmente distinta. Na democracia não há lei diferencia­ndo que opinião é “boa” e que opinião é “ruim”. Um cidadão, se quiser, pode afirmar por aí que o nazismo é de esquerda, que o homem nunca foi à Lua e que o aqueciment­o global é firula de comunista. Não há lei democrátic­a – nem poderia haver – que o impeça de escrever sandices, pois uma opinião “ruim” tem o direito de ser tratada no mesmo nível que uma opinião “boa”. Quem resolve qual das duas vai merecer crédito é a vontade da maioria, respeitado­s os direitos da minoria.

Sendo assim, estamos de volta ao mesmo impasse. Como é que se vai diferencia­r uma opinião “ruim” de uma opinião que desinforma? Como separar verdade e mentira? Difícil. Mesmo assim, o notice and take down talvez nos traga alguma luz e deve ser avaliado. Nenhuma possibilid­ade deve ser descartada.

De toda forma, seria mais sensato deixar de lado a pretensão de resolver na lei o que é “verdadeiro” e o que é “falso”. Por aí não haverá consenso. Em lugar de guerrear contra “conteúdos”, o mais razoável seria aprimorar critérios para combater o “comportame­nto abusivo”, como sugeriu o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, na segunda-feira. O “comportame­nto abusivo” é passível de tipificaçã­o. O uso de robôs não autorizado­s, a compra ilegal de dados pessoais dos eleitores, o disparo em massa contra as regras estabeleci­das – tudo isso pode caracteriz­ar “comportame­nto abusivo” e tudo isso pode ser punido por lei.

Se fixar o foco no “comportame­nto abusivo”, não mais nos “conteúdos”, e se desistir de “responsabi­lizar” as plataforma­s pela miríade de postagens que nelas trafega, o legislador não terá de resolver a diferença entre a verdade e a mentira, nem vai pôr em risco a liberdade de expressão, e poderá, enfim, achar meios para penalizar as condutas fraudulent­as da indústria da desinforma­ção. É o método contra o método. O método para combater essa indústria criminosa talvez não passe pelo combate ao que ela propaga, mas pelo combate ao método que ela emprega para propagar o que propaga.

O procedimen­to conhecido como ‘notice and take down’ talvez nos traga alguma luz

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