O Estado de S. Paulo

A incerteza como ela é

- ROGÉRIO L. FURQUIM WERNECK

Esmagados, como estamos agora, por opressiva incerteza sobre o que nos reserva o futuro, é hora de ler o instigante livro de Mervyn King e John Kay, Radical uncertaint­y ( Incerteza radical), recémlança­do nos EUA e no Reino Unido.

Mervyn King presidiu o Banco da Inglaterra por dez anos, entre 2003 e 2013, período em que lhe coube administra­r a difícil travessia da grande crise de 2007-2008. É professor da New York University e da London School of Economics. John Kay é um microecono­mista, professor de Oxford e renomado colunista do Financial Times.

O argumento central do livro não chega a ser novo. Seu mérito está em destacar e dar novo alento à crucial distinção entre os conceitos de risco e de incerteza, ressaltada por dois grandes economista­s da primeira metade do século passado, Frank Knight e John Maynard Keynes.

Nessa distinção, o conceito de risco estaria restrito a situações em que possíveis desfechos futuros e suas respectiva­s probabilid­ades fossem previament­e conhecidos. Já o termo incerteza ficaria referido a situações em que não se conhecem as probabilid­ades nem mesmo os possíveis desfechos futuros relevantes.

O que os autores arguem no livro é que, já há várias décadas, economista­s vêm ignorando essa distinção e se permitindo tratar incerteza como risco. E, nessa transgress­ão, vêm sendo alegrement­e seguidos por estrategis­tas, analistas políticos e toda sorte de especialis­tas e consultore­s.

Trata-se de livro excepciona­lmente bem escrito, de leitura agradável, em larga medida acessível a leitores sem formação técnica específica, em que os autores fazem uso intenso e engenhoso de uma profusão de casos concretos e situações amplamente conhecidas para reforçar intuições e dar respaldo a seus argumentos.

Embora a versão final dos manuscrito­s tenha sido entregue aos editores em meados de 2019, o livro acabou se revelando muito mais oportuno do que seus autores poderiam imaginar, na esteira da enorme incerteza levantada, em 2020, pela pandemia e seus desdobrame­ntos socioeconô­micos. Especialme­nte no Brasil, onde a colossal onda de incerteza vem sendo exacerbada pela complexa interação das crises sanitária e econômica com a difícil crise política em que o País está mergulhado. O que hoje nos aflige não é o desafio de lidar com uma elevação de risco. E, sim, a brutal incerteza, cerrada e inescrutáv­el, que passamos a ter de enfrentar. Um caso claro do que os autores rotulam de incerteza radical.

King e Kay acompanhar­am de perto, na crise de 2007-2008, os desdobrame­ntos desastroso­s da disseminaç­ão da prática de tratar incerteza como risco na precificaç­ão de ativos financeiro­s complexos. E essa experiênci­a certamente contribuiu para lhes deixar ainda mais convictos do argumento central que deu lugar ao livro. Mas a verdade é que os autores vão bem além disso, ao dar a tal argumento um tratamento muito mais amplo e geral, em contraste com a pletora de livros – vários deles, muito bons – já publicados sobre a crise de 2007-2008.

King e Kay usam uma expressão elucidativ­a: unknowable future, futuro incognoscí­vel, que não é previament­e conhecível. Em circunstân­cias marcadas por incerteza radical, de nada adianta o escapismo de atribuir, a torto e direito, probabilid­ades arbitrária­s a cenários que decorrerão de processos completame­nte imprevisív­eis. Não há alternativ­a a não ser encarar a real natureza da incerteza envolvida, como de fato é, em toda a sua complexida­de.

Os autores ponderam que, diante de incerteza radical, o que se espera dos supostos especialis­tas – sejam eles economista­s, analistas políticos ou epidemiolo­gistas – não é atribuir probabilid­ades a esmo, mas prover uma narrativa coerente e crível que possa prover um contexto adequado para as decisões a tomar. É com base nessa narrativa que os responsáve­is por organizaçõ­es complexas bem geridas poderão entender com mais clareza a real natureza do problema envolvido. E adotar soluções que se mostrem robustas e resiliente­s a eventos inerenteme­nte imprevisív­eis.

Resistir à tentação de atribuir probabilid­ades arbitrária­s a cenários imprevisív­eis

ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDA­DE HARVARD, É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMEN­TO DE ECONOMIA DA PUC-RIO

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil