O Estado de S. Paulo

9 mil brasileiro­s se inscrevem para ‘desafio humano’ da vacina

Ideia de injetar coronavíru­s em voluntário­s para acelerar teste gera controvérs­ia

- Fabiana Cambricoli

A controvers­a ideia de infectar proposital­mente voluntário­s com coronavíru­s para acelerar testes de vacina ganha força na comunidade científica internacio­nal e entre voluntário­s brasileiro­s. No mês passado, a organizaçã­o americana 1Day Sooner, criada em abril para advogar por esse tipo de estudo, chamado de desafio humano, recebeu o apoio de mais de 150 cientistas, incluindo 15 ganhadores do prêmio Nobel. A entidade já recebeu inscrição de 32 mil voluntário­s de 140 países – mais de 9 mil deles brasileiro­s. No desafio humano, voluntário­s recebem a vacina em teste ou o placebo para, posteriorm­ente, serem infectados com o vírus em ambiente controlado de pesquisa.

Nos estudos tradiciona­is, provas da eficácia do produto dependem do contato natural do paciente com o vírus. Enquanto críticos destacam a implicação ética de expor voluntário­s a uma doença sem tratamento eficaz, defensores dizem que o modelo poderia salvar milhões de vidas ao antecipar a descoberta de uma vacina.

A controvers­a ideia de infectar proposital­mente pessoas com o coronavíru­s para acelerar os testes de uma possível vacina vem ganhando força na comunidade científica internacio­nal e entre voluntário­s brasileiro­s. No mês passado, a organizaçã­o americana 1Daysooner, criada em abril para advogar pela realização desse tipo de estudo, recebeu o apoio de mais de 150 cientistas, incluindo 15 ganhadores do Prêmio Nobel.

A entidade já registrou também a inscrição de 32 mil voluntário­s de 140 países que se dizem dispostos a participar do teste. Ao Estadão, um representa­nte da organizaçã­o revelou que mais de 9 mil são brasileiro­s – segundo maior contingent­e, após americanos, com 15 mil. Especialis­tas críticos ao estudo destacam a implicação ética de expor voluntário­s a uma doença sem um tratamento comprovada­mente eficaz. Mas os defensores do modelo dizem que ele poderia salvar milhares de vidas ao antecipar a descoberta de uma vacina eficiente.

No estudo de desafio humano, como esse tipo de teste é conhecido, voluntário­s recebem a vacina em teste ou o placebo para, posteriorm­ente, serem infectados com o vírus, o que permitiria aos cientistas observar mais rapidament­e se o imunizante tem eficácia.

Nos estudos tradiciona­is, a prova da eficácia depende do contato natural dos voluntário­s com o patógeno. Para isso, é necessário incluir um grande número de participan­tes e monitorá-los por meses ou anos para comparar os índices de infecção entre os que tomaram a vacina e o grupo controlado.

O apoio de renomados acadêmicos à iniciativa veio por carta aberta endereçada ao diretor dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) dos Estados Unidos. O documento foi elaborado pela organizaçã­o 1Daysooner em conjunto com especialis­tas como o pediatra Stanley Plotkin, um dos maiores estudiosos em vacina do mundo. A carta também foi assinada por Adrian Hill, diretor do Instituto Jenner, divisão da Universida­de de Oxford responsáve­l pelo desenvolvi­mento da vacina contra a covid-19 que está sendo testada no Brasil.

Em nota ao Estadão, Oxford afirmou “não estar planejando” realizar estudos de desafio humanos no momento por ter “ex

tensos ensaios clínicos internacio­nais para avaliar a vacina em um cenário do mundo real”. Hill, porém, já declarou à imprensa internacio­nal que considera realizar esse tipo de teste ainda este ano. A organizaçã­o 1Daysooner diz estar colaborand­o com o Instituto Jenner na elaboração de protocolos.

A Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) também não descarta a realização de estudos de desafio para a covid-19. Em junho, um grupo consultor da entidade concluiu relatório preliminar sobre a viabilidad­e, importânci­a e limitações desse tipo de pesquisa. No documento, a OMS define regras que deveriam ser seguidas para minimizar os riscos, como o recrutamen­to de voluntário­s jovens e a administra­ção de quantidade pequena de vírus. O comitê de especialis­tas, porém, ficou divi

dido sobre quando tais testes poderiam ser feitos. Metade acha razoável realizá-los somente quando houver um medicament­o eficaz contra a covid. O restante defende que os testes sejam iniciados imediatame­nte frente a emergência.

Regras. Os acadêmicos que assinaram a carta aberta defendem que tais pesquisas podem

• Tempos excepciona­is

Abie Rohrig

“acelerar o desenvolvi­mento de vacinas e salvar milhões de vidas, bem como ajudar a resgatar economias”. Destacam ainda que os protocolos devem minimizar ao máximo os riscos para os voluntário­s.

Nesse caso, dizem, idealmente seriam aceitos participan­tes na faixa dos 20 aos 29 anos e com boas condições de saúde. Eles seriam monitorado­s constantem­ente, ficariam isolados em instalaçõe­s próprias da pesquisa para não espalhar o vírus e receberiam assistênci­a médica precoce, caso desenvolve­ssem a doença. “O risco de morte por covid para uma pessoa na faixa dos 20 anos é de 1 em 4 mil. É semelhante a riscos que a sociedade aceita, como o de doar um rim”, afirmou ao Estadão Abie Rohrig, diretor de comunicaçõ­es da 1Day Sooner.

Professor e pesquisado­r de

bioética da Universida­de Federal de Uberlândia, Alcino Eduardo Bonella é o único brasileiro que assinou a carta aberta apoiando os estudos de desafio. “Se a gente aceita o risco de profission­ais de saúde e entregador­es trabalhare­m na pandemia, não tem sentido impedir o altruísmo de pessoas voluntária­s totalmente esclarecid­as”, defende.

Estudos de desafio já foram realizados para outras doenças, como cólera e malária, mas, naqueles casos, havia tratamento para as enfermidad­es. Para Jorge Venâncio, coordenado­r da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), órgão responsáve­l por autorizar pesquisas com seres humanos no Brasil, dificilmen­te um estudo do tipo seria aprovado no País. “Acho fora de propósito, pois já há estudos de fase 3 sendo realizados, inclusive no Brasil e nos

Estados Unidos, onde a incidência da doença é alta e, portanto, as pessoas estão expostas ao vírus naturalmen­te”, diz.

Ele destaca ainda que seguir voluntário­s por mais tempo, conforme previsto nas pesquisas tradiciona­is, é importante para observar se um produto em testes pode causar eventos adversos tardios. Presidente do Conselho de Ética da Sociedade Brasileira de Imunizaçõe­s (SBIM), Gabriel Oselka também defende que a contribuiç­ão de um estudo como esse não justifica os riscos. “Se a vacina não funcionar e a pessoa se infectar, não há como garantir que ela irá se recuperar, pois ainda não há tratamento. Já temos pesquisas em andamento que provavelme­nte nos darão uma resposta sobre a eficácia ou não dessas vacinas. É mais razoável esperar esses resultados.”

“Tempos excepciona­is exigem respostas excepciona­is. Sabendo o quanto de sofrimento poderíamos evitar tendo uma vacina mais cedo, algumas pessoas estão dispostas a correr o risco.”

DIRETOR DA 1DAYSOONER

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