O Estado de S. Paulo

A imprescind­ível educação cívica

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Na falta de uma liderança política capaz de unir em vez de separar, os brasileiro­s se viram na pandemia em meio a um bate-boca estéril.

Amacabra contabilid­ade dos mortos pelo coronavíru­s e o noticiário cotidiano sobre a míngua de milhões de cidadãos como consequênc­ia da pandemia e da atuação errática do governo deveriam bastar para que o País refletisse seriamente sobre como chegamos a essa triste e vergonhosa situação. É claro que a dimensão da crise pegou todos de surpresa, aqui e no resto do mundo, mas é fato também que o Brasil foi um dos poucos países que menospreza­ram a pandemia até que esta se tornasse o pesadelo que é hoje. O próprio presidente Jair Bolsonaro, como se sabe, continua a fazer pouco da doença, ainda que ele mesmo seja uma de suas vítimas. O fato de que o Brasil não tem ainda um ministro da Saúde efetivo e de que o governo trocou duas vezes o titular da pasta durante a pandemia, por mero capricho do presidente, é reflexo desse comportame­nto irresponsá­vel. Restou aos Estados e municípios agirem por conta própria, sem a necessária coordenaçã­o federal, gerando confusão e em muitos casos agravando a crise.

Mas essa trajetória calamitosa foi construída também, ou talvez principalm­ente, por uma crise bem mais ampla e longeva do que a da pandemia: a da ignorância cívica.

O Brasil dispõe de todos os instrument­os para o bom funcioname­nto da democracia. A Constituiç­ão estabelece a separação de Poderes e um sistema de freios e contrapeso­s.

Há eleições regulares e liberdade de imprensa, e as instituiçõ­es são apetrechad­as para funcionar conforme o ordenament­o constituci­onal. Contudo, todo esse aparato não tem serventia se os cidadãos dele não participam.

Essa participaç­ão obviamente não se esgota com o depósito do voto nas urnas durante as eleições. Muito além disso, é preciso, em meio à natural confusão de interesses, ter a capacidade de encontrar propósitos comuns, objetivo capital da política. É isso o que gera o senso de solidaried­ade que induz os cidadãos a aceitarem decisões difíceis – como, por exemplo, ficar em casa para enfrentar a pandemia – sem que seja necessário recorrer a medidas autoritári­as.

Embora sempre seja eleito por apenas uma parte da população, um governo terá muito mais chances de ser bem-sucedido se liderar esse processo com disposição para ouvir as mais diversas opiniões e se os cidadãos se organizare­m para fazer chegar suas demandas ao governante.

A responsabi­lidade de governar, portanto, vai muito além da capacidade de administra­r os problemas do dia a dia: um bom governante não é aquele que, agindo como um messias iluminado, dita o que acredita ser o melhor para o País, e sim aquele que lidera seus concidadão­s na discussão sobre as melhores soluções para as crises e também sobre o futuro. Somente assim as decisões governamen­tais terão o necessário verniz de legitimida­de para serem aceitas pela maioria.

Como parece claro a esta altura, Bolsonaro renunciou a esse papel, crucial numa democracia. Deliberada­mente negou-se a buscar o propósito comum, agindo como se governasse apenas para seus eleitores.

Bolsonaro, contudo, é apenas uma consequênc­ia da incapacida­de de muitos brasileiro­s de compreende­r como funciona um governo e o que se deve esperar de um presidente. Aqui prevalece a ideia de que o vencedor leva tudo. Mesmo quem não votou em Bolsonaro parece não saber como explorar os mecanismos da democracia, no seu nível mais básico, para superar esta crise de múltiplas dimensões.

Na falta de uma liderança política capaz de unir em vez de separar, os brasileiro­s se viram em meio a um bate-boca estéril sobre o que deveria ser prioritári­o em meio à pandemia – salvar vidas ou preservar empregos. Não há argumentaç­ão, apenas gritaria e intransigê­ncia, como se fossem pontos de vista inconciliá­veis.

Bolsonaro, portanto, é o sintoma de um mal muito maior. Há no País uma enorme carência de educação cívica, que prepare os cidadãos não apenas para entender os limites do poder, o funcioname­nto das instituiçõ­es e o espírito da Constituiç­ão, mas também para participar do debate político em busca de compatibil­idades e de consensos – enfim, do interesse comum. Sem essa educação, será muito mais penoso sair desta ou de qualquer outra crise.

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