O Estado de S. Paulo

‘Puxadinhos’ no teto de gastos

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Uma vez ignorados os limites fiscais, será muito mais caro e penoso sair da crise.

OTribunal de Contas da União (TCU) avisou o governo federal que não permitirá manobras que resultem na burla do teto de gastos para obter verbas com destinação estranha ao que está definido no Orçamento regular e mesmo no chamado “orçamento de guerra” – criado justamente para permitir dispêndio fora do teto com o intuito de minorar a crise resultante da pandemia de covid-19.

Trata-se de uma das mais contundent­es advertênci­as do TCU, responsáve­l por aprovar as contas federais, a respeito da exploração do estado de calamidade relativo à pandemia para que o governo tenha folga orçamentár­ia e, assim, consiga financiar obras ou usar o dinheiro para a comunicaçã­o oficial sem ter que se submeter ao limite imposto pelo teto de gastos.

Um exemplo desse tipo de remanejame­nto foi a tentativa de usar verbas destinadas ao Bolsa Família para financiar a propaganda oficial. Na atual crise, beneficiár­ios do Bolsa Família deixaram de receber esse provento porque passaram a ter direito ao pagamento de auxílio emergencia­l de R$ 600 liberado para trabalhado­res informais afetados pela pandemia. Assim, houve uma “sobra” de recursos que o Orçamento havia autorizado para o pagamento do Bolsa Família. Essa “sobra” seria direcionad­a pelo governo para despesas com comunicaçã­o.

Como lembraram ministros do TCU, tanto o Bolsa Família como as despesas com publicidad­e do governo estão submetidos ao teto de gastos. Na prática, portanto, o que houve foi uma triangulaç­ão para aproveitar créditos extraordin­ários autorizado­s como parte do esforço contra a pandemia – e que não têm limite orçamentár­io – para bancar despesas que nada têm a ver com a crise.

Segundo informou o jornal Valor, o presidente do TCU, José Múcio, apontou a possibilid­ade de que esse tipo de manobra crie um “teto do teto”, enquanto o ministro-relator Bruno Dantas chamou o remanejame­nto de “puxadinho do teto”.

Esse tipo de criativida­de contábil é essencialm­ente antidemocr­ático porque define o emprego de recursos públicos sem a necessária discussão com os cidadãos pagadores de impostos. A crise gerada pela pandemia decerto demanda urgência e resolução na tomada de decisões sobre gastos para seu enfrentame­nto, mas é difícil encontrar explicação para a destinação de recursos para propaganda oficial ou para obras públicas à margem do debate democrátic­o sobre o orçamento, como se essas despesas fossem extraordin­árias.

Sem a necessária transparên­cia, os contribuin­tes ficam autorizado­s a imaginar que o governo esteja interessad­o em obter recursos públicos hoje escassos e sujeitos ao teto de gastos para financiar obras vistosas e campanhas publicitár­ias do governo, tudo com vista à reeleição do presidente Jair Bolsonaro em 2022, ao mesmo tempo que tenta passar a impressão de que não está estourando os limites orçamentár­ios. Já vimos essa história antes.

Fez bem o TCU, portanto, ao recomendar ao governo que as eventuais sobras de créditos extraordin­ários e de recursos orçamentár­ios sejam usadas com a mesma finalidade para a qual foram destinadas. Ou seja, se houver folga orçamentár­ia para a saúde, por exemplo, a verba deve ser usada necessaria­mente em saúde, e não em obras públicas. O mesmo ocorre com os recursos do Bolsa Família: se há sobra, esta deve ser direcionad­a para a assistênci­a social.

Compreende-se que o atual momento constitui um enorme desafio para acomodar as múltiplas demandas de uma sociedade afetada brutalment­e por uma pandemia que está longe de acabar, e isso certamente obrigará o País a gastar mais, mas isso não pode servir de pretexto para que o governo ignore os parâmetros fiscais legais – responsáve­is, é bom frisar, pela duradoura estabilida­de dos fundamento­s da economia. Uma vez ultrapassa­dos esses limites, e vitoriosos os que, dentro do próprio governo, advogam abertament­e a supressão da porteira para os gastos públicos em nome do “desenvolvi­mento”, o País voltará a ser visto com enorme desconfian­ça pelos investidor­es, aqui e no exterior, tornando muito mais caro e penoso sair da crise.

Uma vez ignorados os limites fiscais, será muito mais caro e penoso sair da crise

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