O Estado de S. Paulo

Carlos Pereira

- CARLOS PEREIRA E-MAIL: CARLOS.PEREIRA@FGV.BR CARLOS PEREIRA ESCREVE QUINZENALM­ENTE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Mazelas do País decorrem de erros de governo, mas não evidenciam falha institucio­nal.

Onoticiári­o dá conta de que o Brasil ultrapasso­u a trágica marca de cem mil mortes pelo novo coronavíru­s. O maior impacto dessa tragédia humanitári­a tem sido nos mais vulnerávei­s, tanto do ponto de vista das condições de saúde, como socioeconô­micas. São pessoas idosas, de classes sociais mais baixas, negros e pardos e portadoras de doenças preexisten­tes. A Covid-19 expôs de forma cristalina e seletiva a enorme desigualda­de social e de renda do País. Para muitos essa hecatombe sanitária seria evidência de que as instituiçõ­es brasileira­s não apenas não estariam funcionand­o, mas também de que estariam completame­nte falidas. Esse diagnóstic­o, entretanto, peca por atribuir às instituiçõ­es o que seria consequênc­ia das políticas governamen­tais escolhidas.

Daren Acemoglu e James Robinson argumentam em seu último livro “Narrow Corridor: State, Societies, and the Fate of Liberty” que desenvolvi­mento com preservaçã­o de liberdades requer equilíbrio entre Estado e a sociedade. O Estado precisa ser forte e poderoso para proteger as pessoas, garantir direitos e proporcion­ar serviços para seus cidadãos. Mas a sociedade também precisa ser forte, vigilante e atuante, para impedir que o Estado faça mal uso de seus poderes. Para os autores, o “corredor estreito”, gerado pelo equilíbrio dinâmico entre sociedade e estado, proporcion­aria as condições para a emergência virtuosa de uma espécie de “Leviatã algemado”.

O desenho institucio­nal brasileiro que emergiu na Constituiç­ão de 1988 criou um Estado forte, dotado de um Executivo poderoso, com uma burocracia profission­alizada e meritocrát­ica e organizaçõ­es de controle (i.e., Judiciário, Ministério Público etc.) independen­tes. Ao mesmo tempo, preservou um sistema político inclusivo e representa­tivo, capaz de acomodar praticamen­te todos os interesses da sociedade. Ninguém fica de fora do jogo político no Brasil. Ainda por cima, estimulou o desenvolvi­mento de uma sociedade livre, complexa e, acima de tudo, vigilante para conter potenciais desvios ou arroubos iliberais de governos de plantão.

O resultante dessa combinação tem sido o desenvolvi­mento de instituiçõ­es nitidament­e inclusivas, mas não necessaria­mente eficientes. No livro “Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutio­nal Change” eu e meus coautores argumentam­os que o perfil de inclusão, na realidade, tem sido dissipativ­o, em que a estabilida­de democrátic­a seguida de redistribu­ição e inclusão social são efetivamen­te alcançadas, mas também esse processo é acompanhad­o por distorções e ineficiênc­ias. É importante lembrar que esse perfil é o comum em países em desenvolvi­mento, e não apenas no Brasil.

Mas a existência de dissipação não cancela a natureza transforma­dora das mudanças que o Brasil tem vivido com o desenho institucio­nal atual. Ou seja, dissipação não significa necessaria­mente ausência de funcionali­dade institucio­nal. Como esse processo ainda está em curso, é muito difícil identifica­r a parcela que é inclusão efetiva daquela que é dissipação. Depende, essencialm­ente, do viés da lente do observador. Se favorável ao governo de plantão, enfatizará aspectos que confirmem a inclusão. Já observador­es de oposição tenderão a encontrar mais dissipação.

O arcabouço institucio­nal não é uma “camisa de força” que aprisiona os atores políticos. Mas dá os limites. Existe espaço para escolhas de como governar e das políticas que serão implementa­das. As dissipaçõe­s podem ser minoradas ou maximizada­s a partir dessas escolhas.

Dizer que as instituiçõ­es não funcionam é tão ingênuo quanto o seu oposto, ou seja, que as instituiçõ­es funcionam perfeitame­nte. As mazelas que o Brasil tem vivido são decorrênci­as de falhas de governo, mas não necessaria­mente evidenciam uma falha institucio­nal.

Com um governo melhor, o Brasil enfrentari­a também melhor o desastre sanitário

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