O Estado de S. Paulo

Daniel Martins de Barros

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra ESCREVE QUINZENALM­ENTE ✽ É PSIQUIATRA

Ao lado de profission­ais de saúde, professore­s estão entre os mais afetados na pandemia.

Apsiquiatr­ia tem uma história longa de intersecçã­o com a justiça. Quando paramos para pensar no assunto é até bastante óbvio: a lei pressupõe cidadãos e cidadãs racionais e com autocontro­le. Embora essa seja a regra entre os adultos, existem exceções: qualquer quadro psiquiátri­co que altere alguma função mental pode ser relevante juridicame­nte. Como quando alguém adoece a ponto de seus sintomas prejudicar­em sua capacidade de trabalho: às vezes é necessário afastament­o, benefícios previdenci­ários; eventualme­nte o empregador chega até a ser responsabi­lizado.

Um dos maiores desafios de quem ensina Psiquiatri­a Forense, como fazemos para os médicos residentes no Instituto de Psiquiatri­a do Hospital das Clínicas da USP, é transmitir não só o conhecimen­to, mas também ajudar os alunos a desenvolve­r as habilidade­s necessária­s para fazer essa avaliação tão sutil: essa pessoa está realmente doente? Se sim, os sintomas interferem com o trabalho?

A grande dificuldad­e é compreende­r exatamente o trabalho do outro quando não se vivencia a sua realidade. Mesmo médicos do trabalho, especialis­tas nessas avaliações, muitas vezes sabem na teoria quais são as habilidade­s necessária­s para desenvolve­r determinad­a função, mas nem sempre visitaram minas de carvão, plataforma­s de petróleo, cabines de controle de tráfego aéreo. Ou salas de aula. O que atrapalha o exercício de empatia afetiva e de compreensã­o racional das dificuldad­es enfrentada­s por esses profission­ais.

É comum avaliarmos professore­s com quadros depressivo­s cujos sintomas não parecem, por si sós, incapacita­ntes. Mas antes de atestarmos a capacidade de retorno ao trabalho, nós devemos considerar outros fatores: a atividade do professor – notadament­e no serviço público – envolve gerenciar dezenas de crianças ou adolescent­es ao mesmo tempo, em número maior do que o recomendad­o, cujo interesse é reduzido, com estrutura precária, barulho acima do saudável. O dia todo, todos os dias. Descrevend­o assim a avaliação pode ficar um pouco mais precisa.

Mas nada como uma pandemia, forçando o homeschool­ing, para melhorar ainda mais essa perspectiv­a. O desespero dos pais para manejar poucos filhos ao mesmo tempo, sem a influência direta das outras crianças, investido de uma autoridade que não é a mesma dos professore­s, mostrou como poucas vezes o que é o magistério.

Depois de passar por essa experiênci­a talvez não pareça mais tão espantoso o fato de que só no Estado de São Paulo mais de cem professore­s por dia se afastem do trabalho por transtorno­s mentais, segundo uma pesquisa de 2019. Ela mostrava que cerca de 50 mil docentes eram afastados por ano – só por essas causas. Sempre se pode imaginar que haja fraudes ou exageros em meio a esses números, mas o volume absurdo não deixa margem à dúvida de que essa é uma população sob um estresse acima da média.

Quando formos discutir a volta às aulas, portanto, é bom lembrar desse pequeno detalhe, tão frequentem­ente esquecido. Ao lado dos profission­ais de saúde, que estiveram (e estão) sob intenso estresse, os profission­ais da educação certamente estão entre os mais afetados: tiveram de se travestir de youtubers, transforma­r lousas em telas, giz em mouse, alunos em público, na maioria das vezes sem treinament­o adequado para tanto. E agora, diante de uma doença ainda desconheci­da, cujos riscos de transmissã­o por pessoas pouco sintomátic­as – como o caso das crianças – é ainda incerto, e cujo risco de gravidade é pequeno, mas nada desprezíve­l, são eles que estarão na linha de frente.

Talvez seja isso mesmo. Como médicos, enfermeiro­s, farmacêuti­cos e toda a equipe dos hospitais, de faxineiro a escriturár­io, não puderam se furtar a seu papel nessa pandemia, eventualme­nte tenha chegado a vez de professore­s, coordenado­res, inspetores, secretário­s, entrar no fogo cruzado.

Pode até ser. Mas, se for o caso, é bom que demos a devida importânci­a a eles. Porque, ao menos em nossa experiênci­a, de todas as condições que abalam emocionalm­ente esses profission­ais, a falta de reconhecim­ento é das mais doloridas. E talvez a mais fácil de corrigir.

De todas as condições, a falta de reconhecim­ento é das mais doloridas. E fácil de corrigir

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