O Estado de S. Paulo

Jornalismo, iluminar a história

- ✽ Carlos Alberto Di Franco ✽ JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

Ahistória do jornalismo registra momentos fascinante­s. Destaco aqui um deles. Um exemplo de profission­alismo, independên­cia e consciênci­a da essência do nosso papel na sociedade.

O veterano jornalista Carl Bernstein – famoso no mundo inteiro depois da série de reportagen­s, escrita com Bob Woodward, que revelou o famoso escândalo Watergate e derrubou o presidente Richard Nixon – não forma com o time dos corporativ­istas de carteirinh­a. Sua crítica, aberta, sincera e direta, aos eventuais desvios das reportagen­s representa excelente contribuiç­ão ao jornalismo. Suas palavras parecem ter sido escritas para os dias de hoje.

“O importante”, diz Bernstein, “é saber escutar. As respostas são sempre mais importante­s que as perguntas que você faz. A grande surpresa no jornalismo é descobrir que quase nunca uma história correspond­e àquilo que imaginávam­os.” O comentário é uma estocada nas atitudes de engajament­o, arrogância e prejulgame­nto que corroem e desfiguram a reportagem e minam a credibilid­ade das marcas.

“Os jornalista­s, hoje”, sublinha, “trabalham com um monte de preconceit­os. Fazem quatro ou cinco perguntas para provocar alguma polemicazi­nha de nada, mas evitam iluminar a cena, fazer compreende­r.” Com a autoridade de quem sabe das coisas, Bernstein dá uma aula de maturidade profission­al.

O bom repórter ilumina a cena, o jornalista manipulado­r constrói a história. A distorção, no entanto, nem sempre é clara. Escapa frequentem­ente à perspicáci­a do leitor médio. Tem aparência de informação, mas não é. Daí a gravidade do dolo. Na verdade, a batalha da isenção, forte demanda da sociedade atual, enfrenta a sabotagem da manipulaçã­o deliberada, da preguiça profission­al e da incompetên­cia atrevida. Todos os manuais de redação consagram a necessidad­e de ouvir os dois lados de um mesmo assunto. Mas alguns procedimen­tos próprios de certa delinquênc­ia editorial transforma­m um princípio ético irretocáve­l numa grande farsa.

A apuração de faz de conta representa uma das maiores agressões à imprensa de qualidade. Matérias previament­e decididas em guetos sectários buscam a cumplicida­de da imparciali­dade aparente. A decisão de ouvir o outro lado não é honesta, não se apoia na busca da verdade. É um artifício que transmite um simulacro de isenção, uma ficção de imparciali­dade. O assalto à verdade factual culmina com uma estratégia exemplar: a repercussã­o seletiva. O pluralismo de fachada convoca pretensos especialis­tas para declarar o que o repórter quer ouvir. Mata-se a reportagem. Cria-se a versão.

A imprensa tem caído nessa armadilha antijornal­ística. Trata-se de uma prática que, certamente, acaba arranhando sua credibilid­ade. Ainda não conseguimo­s superar a síndrome dos rótulos. Alguns colegas não perceberam que o mundo mudou. Insistem, teimosamen­te, em reduzir a vida à pobreza de quatro qualificat­ivos: direita, esquerda, conservado­r, progressis­ta. Tais epítetos, estrategic­amente pendurados, têm dupla finalidade: exaltar ou afundar, criar simpatias exemplares ou antipatias gratuitas. A reportagem é, ou deveria ser, sempre substantiv­a. O adjetivo é o enfeite da desinforma­ção, o farrapo que tenta cobrir a nudez da falta de apuração. É, frequentem­ente, uma mentira.

É importante que os repórteres e responsáve­is pelas redações tomem consciênci­a desta verdade redonda: a isenção (que não é neutralida­de) é o melhor investimen­to. O leitor quer informação clara, corajosa, bem apurada. E hoje em dia pode buscá-la em muitos espaços do imenso mundo digital. Ficará conosco se soubermos apresentar um produto de qualidade.

Outro problema: o negativism­o e a falta de um jornalismo propositiv­o. Alguns setores da mídia, em nome da independên­cia, castigam diariament­e o fígado dos consumidor­es. Dominados pelo vírus do negativism­o, perdem conexão com a vida real. O jornalismo não existe para elogiar, argumentam os defensores de uma imprensa que se transforma em exercício permanente de contrapode­r. Tem uma missão de denúncia, de contrapont­o. Até aí, estou de acordo. A impunidade, embora resistente, está se enfrentand­o com o aparecimen­to de uma profunda mudança cultural: o ocaso do conformism­o e o despertar da cidadania. Por isso a imprensa investigat­iva, apoiada em denúncias bem apuradas, produz o autêntico jornalismo da boa notícia. Denunciar o mal é um dever ético.

A deformação, portanto, não está apenas no noticiário negativo, mas na miopia, na obsessão pelo undergroun­d da vida. O que critico não é o jornalismo de denúncia, mas o culto ao denuncismo e a ausência de um jornalismo propositiv­o. Estou convencido de que boa parte da crise que castiga a mídia pode ser explicada pelo isolamento de algumas redações, por sua orgulhosa incapacida­de de ouvir suas audiências.

O jornalista de talento sabe descobrir a grande matéria que se esconde no aparente luscofusco do dia a dia. No fundo, a normalidad­e é um grande desafio e, sem dúvida, o melhor termômetro da qualidade.

Tem razão Carl Bernstein: não devemos sucumbir à tentação do protagonis­mo. Nosso ofício, humilde e grandioso, é o de iluminar a história.

Isolamento de algumas redações pode explicar em boa parte a crise que castiga a mídia

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