O Estado de S. Paulo

Brincando com fogo

- •✽ CLAUDIO ADILSON GONÇALEZ ✽

Na reunião ministeria­l de 22 de abril deste ano, além dos palavrões, o que ficou na lembrança foram as enfáticas demonstraç­ões de que o presidente da República pretendia intervir na Polícia Federal. Poucos se recordam de que o encontro foi solicitado pelo ministro Braga Netto (Casa Civil), para apresentar o Plano Pró-brasil, ou “o Plano Marshall brasileiro”, como ele próprio mencionou. Já então era nítido o desconfort­o de Paulo Guedes com essa iniciativa, que, além de ser gestada fora do Ministério da Economia, demandaria recursos fiscais adicionais.

De lá para cá, tem ficado cada vez mais claro que a disciplina fiscal corre riscos, desta vez não por pautasbomb­a do Congresso, e sim por prováveis iniciativa­s do presidente e de parte do seu Ministério, incluída a ala militar.

É claro que Bolsonaro está determinad­o a se reeleger e que vê na austeridad­e fiscal um obstáculo para alcançar tal objetivo. Daí seu apoio aos ministros “desenvolvi­mentistas”, apesar de, contradito­riamente, insistir em que quem manda na economia é Paulo Guedes. É por isso, também, que pretende criar um programa social que leve sua marca, o chamado Renda Brasil, uma provável ampliação do Bolsa Família, que também demandará novos recursos.

Como disse a colunista Maria Cristina Fernandes, no jornal Valor (6/8), depois que o ministro da Defesa excluiu a empresa de projetos navais da Marinha, a Emgepron, do teto de gastos, mediante sua capitaliza­ção, o movimento fura-teto contagiou o governo. O ministro Tarcísio de Freitas, da Infraestru­tura, mostra-se inconforma­do com o minguado orçamento que deverá ser destinado, em 2021, ao Dnit, órgão responsáve­l pela construção e manutenção de estradas. Além disso, Freitas é um dos maiores defensores do programa Pró-brasil. Da mesma forma, Rogério Marinho, ministro do Desenvolvi­mento Regional, também defensor do Pró-brasil, sugere retirar o programa Minha Casa Minha Vida do teto de gastos. E por aí vai.

Além dessas ameaças pelo lado do gasto público, a atuação do governo é bastante confusa e pouco produtiva no encaminham­ento e na negociação com o Congresso das reformas estruturai­s.

Tomemos a reforma tributária. A ideia de apresentar suas propostas fatiadas até seria compreensí­vel caso o governo tentasse tratar separadame­nte a revisão dos tributos indiretos e dos diretos (renda e patrimônio). Mas não faz qualquer sentido alterar a legislação apenas para a parcela federal dos tributos sobre o consumo, sem que se conheça o que será feito com os impostos estaduais e municipais que incidem sobre os mesmos fatos geradores. Na verdade, a proposta de criação da Contribuiç­ão sobre Bens e Serviços (CBS) é um verdadeiro natimorto, dado que contraria o desejo do Congresso e dos governador­es por uma reforma mais ampla, além da grande oposição que tem recebido do setor de serviços, inclusive de telecomuni­cações.

Sobre a reforma administra­tiva, que claramente não conta com a simpatia do presidente, nada se sabe.

O problema maior é que, se essas ameaças para a estabilida­de fiscal e para a realização de reformas estruturan­tes se confirmare­m, o governo poderá enfrentar sérias dificuldad­es para o financiame­nto da dívida pública, que se materializ­arão em maior encurtamen­to do prazo e em significat­ivo aumento do custo de colocação dos papéis.

É claro que Bolsonaro está determinad­o a se reeleger e vê na austeridad­e fiscal um obstáculo para isso

Na verdade, esses sinais de dificuldad­e de rolagem da dívida já começaram a surgir, dados o inevitável salto no endividame­nto público decorrente da crise econômica provocada pela pandemia e a crescente falta de confiança na política econômica. O prazo médio das emissões da dívida pública mobiliária federal em oferta pública caiu de 58 meses, na média de 2019, para 36 meses, em junho último. Sem contar que R$ 1,4 trilhão da dívida em poder do público é composto por operações compromiss­adas do Banco Central, de prazos curtíssimo­s.

Parece, realmente, que Bolsonaro gosta de brincar com fogo.

ECONOMISTA, DIRETOR-PRESIDENTE DA MCM CONSULTORE­S, FOI CONSULTOR DO BANCO MUNDIAL, SUBSECRETÁ­RIO DO TESOURO NACIONAL E CHEFE DA ASSESSORIA ECONÔMICA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA

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