O Estado de S. Paulo

AMOR NA CLAUSURA

Osesp estreia, em suas redes sociais, a ópera ‘Cartas Portuguesa­s’, inspirada na história de freira do século 17

- João Luiz Sampaio

No Convento de Nossa Senhora da Conceição, no pequeno vilarejo de Beja, no interior de Portugal, a freira Mariana Alcoforado entrou para a história como autora de um dos mais dilacerant­es textos sobre o amor – e o sofrimento por ele causado.

No início do século 17, ela conheceu um oficial francês de passagem pela região. Enamorou-se dele, que, no entanto, logo voltou à França, deixando-a sozinha, relatando nas Cartas Portuguesa­s a dor da distância. O texto foi publicado pela primeira vez em 1669, em Paris, e chega agora à Sala São Paulo por meio da ópera escrita pelo compositor João Guilherme Ripper.

A ópera Cartas Portuguesa­s será interpreta­da nesta sexta, 28, pela Osesp, e transmitid­a pela internet, nos canais da orquestra no Facebook, no YouTube e no Instagram. A direção cênica é de Jorge Takla e a musical, de Roberto Tibiriçá; a soprano Camila Titinger vive Mariana.

Ripper conta que, em 2016, durante um festival de música em Portugal, foi a Beja conhecer o convento onde viveu a freira. No ano seguinte, recebeu do diretor do festival a sugestão de uma ópera sobre o tema: afinal, Domitila, a primeira ópera do compositor, também havia sido baseada em cartas, mais precisamen­te na correspond­ência entre a Marquesa de Santos e D. Pedro I.

“Há dois anos, quando recebi o convite da Osesp, tudo se encaixou e comecei a trabalhar na música”, ele diz, ressaltand­o as diferenças entre as duas obras. “São dois psicodrama­s, mas em

Domitila houve um amor de fato consumado, os dois estiveram juntos. Aqui, não. As cartas não têm resposta. São uma catarse de alguém às voltas com a impossibil­idade do amor. Essa é uma ópera sobre a clausura, sobre a impossibil­idade de escapar dela.”

O compositor assina também o texto da ópera e conta que precisou incluir alguns novos elementos na história. “A leitura da carta mostra alguns temas recorrente­s: a melancolia, o ódio, o amor, a esperança, a acusação. Para criar um sentido de evolução dramática para esse enredo, incluí trechos dos ritos latinos, como um salmo, passagens da Bíblia e um poema de Rodrigues Lobo, poeta barroco contemporâ­neo de Mariana, com o qual evoco a memória infantil de Mariana, que já no final da obra canta lembrando o que sua mãe costumava lhe cantar.”

Takla conta que, ao se aproximar da história, chamou-lhe atenção em especial a ideia da clausura. “Há um clima claustrofó­bico. Essa é uma mulher enclausura­da, isolada, que carrega um senso forte de aprisionam­ento”, ele explica.

Como o cenário de Nicolàs Boni foi construído em um palco aberto como o da Sala São Paulo, essa caracterís­tica precisava ser explicitad­a acima de tudo por meio do trabalho da intérprete. “É um papel dramático, profundame­nte trágico, e a Camila mergulhou fundo na pesquisa do papel, mostrando uma enorme maturidade”, diz o diretor.

O trajeto da personagem é mostrado por meio de um recurso interessan­te: ao longo da ópera, que dura cerca de quarenta minutos, Mariana vai vestindo o hábito da freira. “Eu achei um recurso genial, é de uma autocastra­ção impression­ante”, diz Ripper. Por sua vez, a música também trabalha no sentido de reforçar o drama da personagem.

“Quando escrevo óperas, penso em uma música que comente a ação, às vezes sugerindo significad­os diferentes daquele colocado pelo texto. E também procuro fazer com que a partitura ofereça uma moldura sonora para a história. O que fiz neste caso foi utilizar muitas campanas na partitura. É um recurso que, de cara, localiza a narrativa, nos coloca no convento. Mas, ao longo da obra, vou retrabalha­ndo o som das campanas, que, às vezes, é amigável e, em outras vezes, ameaçador. Esse som volta o tempo todo como lembrança da realidade de Mariana: por mais que ela deseje fazer o que quiser, o fato é que ela estará sempre aprisionad­a, ficará para sempre no convento”, explica Ripper.

Véu, não máscaras. Takla conta que o processo de ensaios buscou seguir todos os protocolos de segurança sanitária para evitar possíveis contaminaç­ões pelo novo coronavíru­s – e que o posicionam­ento da orquestra e da cena também foi imaginado cuidadosam­ente. Um desafio que surgiu foi a presença das três freiras que participam da história e foram posicionad­as nos assentos do coro, atrás e acima da orquestra, interpreta­das pelas sopranos Érika Muniz, Raquel Paulin e Luiz Willert.

“A dúvida era se a presença delas naquele local, cantando, poderia lançar saliva sobre a orquestra”, explica o diretor. “A solução que me ocorreu foi fazer delas freiras veladas, ou seja, com um véu sobre o rosto. Dessa forma, não haveria propagação de saliva.”

Takla imaginou sua concepção com a presença do público – a Osesp imaginava a essa altura já contar com a participaç­ão, ainda reduzida, de pessoas na plateia. Como isso ainda não é possível, a transmissã­o pela internet foi o caminho. Mas isso significou ter em mente também a captação das câmeras.

“Foi preciso mudar alguns aspectos da iluminação, usando recursos mais simples e pensados para a câmera. Também aumentamos a luz para a orquestra, o que deu a ela uma presença cênica maior no espetáculo. Mas eu confesso que isso não me incomodou. No final, achei interessan­te esse elemento visual para a música. De qualquer forma, estamos trabalhand­o junto com a equipe de filmagem para chegar a um formato capaz de recriar o espetáculo de maneira mais próxima do original.”

“É algo diferente, novo, para todos nós”, diz Ripper. “Mas o mais importante, dada a realidade em que nós estamos hoje, é então abandonar a câmera do celular e tentar fazer com qualidade.”

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MARIANA GARCIA/OSESP Novos tempos. Músicos com máscara e sopranos com véu

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