O Estado de S. Paulo

Quem pode afastar um governador

Afastament­o de Wilson Witzel foi medida drástica demais, com efeitos sobre o Estado.

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Para garantir a aplicação da lei penal, preservar a investigaç­ão ou evitar a prática de infrações penais, o Código de Processo Penal autoriza que o juiz aplique algumas medidas cautelares. A Lei 12.403/2011 definiu nove medidas diversas da prisão; por exemplo, a monitoraçã­o eletrônica, a proibição de contato com alguma pessoa determinad­a ou mesmo a “suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais” (art. 319, VI do Código de Processo Penal).

Tendo por base esse dispositiv­o, no dia 28 de agosto, o ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), determinou o afastament­o do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), do cargo por 180 dias, em razão de supostos desvios de dinheiro público destinados à área da saúde. Segundo o ministro, “os fatos não só são contemporâ­neos como estão ocorrendo e, revelando especial gravidade e reprovabil­idade, a abalar severament­e a ordem pública, o grupo criminoso agiu e continua agindo, desviando e lavando recursos em pleno pandemia da covid-19, sacrifican­do a saúde e mesmo a vida de milhares de pessoas, em total desprezo com o senso mínimo de humanidade e dignidade”. Na decisão, Benedito Gonçalves proibiu ainda o acesso de Wilson Witzel às dependênci­as do governo do Estado, a sua comunicaçã­o com funcionári­os e a utilização dos serviços próprios do cargo.

A decisão do ministro Benedito Gonçalves relevou, no entanto, dado significat­ivo. Wilson Witzel não ocupa uma função pública qualquer. Ele é o chefe do Poder Executivo estadual, havendo todo um conjunto de prerrogati­vas relativas ao cargo que não devem ser flexibiliz­adas, sob pena de enfraquece­r o próprio regime democrátic­o. O Estado deve ser eficiente para obstar a prática de crimes, mas deve seguir parâmetros precisos para que seu poder não seja usado em perseguiçõ­es políticas. São gravíssima­s, não há dúvida, as suspeitas contra o governador Wilson Witzel, mas precisamen­te por força da gravidade dos fatos a investigaç­ão deve-se dar dentro da lei, e não à margem.

“Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituiç­ões e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituiç­ão”, diz a Carta de 1988. No caso do Rio de Janeiro, a Constituiç­ão Estadual é bastante clara. “O Governador ficará suspenso de suas funções (i) nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo STJ e (ii) nos crimes de responsabi­lidade, após a instauraçã­o do processo pela Assembleia Legislativ­a” (art. 147, § 1o). No caso, o afastament­o de Wilson Witzel foi decretado em fase investigat­iva, no âmbito da Operação Tris in Idem. Não houve ainda instauraçã­o de ação penal contra o governador Wilson Witzel. Ele ainda não é réu.

Além disso, segundo a lei processual, o juiz deve decretar a medida cautelar depois de ouvir a parte contrária, “ressalvado­s os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida”. O governador não foi ouvido antes do seu afastament­o. Trata-se de uma medida drástica demais, com efeitos sobre toda a população e o funcioname­nto do Estado, para que seja decidida monocratic­amente e sem possibilid­ade de defesa prévia.

A Constituiç­ão do Estado do Rio de Janeiro define, por exemplo, que é competênci­a privativa da Assembleia Legislativ­a autorizar o governador a ausentar-se do Estado por mais de 15 dias consecutiv­os. Não parece razoável que um magistrado possa sozinho decidir, no âmbito de uma investigaç­ão criminal, o afastament­o desse mesmo governador por 180 dias.

Investigaç­ões envolvendo governador­es devem, como é lógico, respeitar integralme­nte a lei processual penal. Mas devem respeitar igualmente o pacto federativo e as prerrogati­vas funcionais dos cargos políticos. Nesse sentido, a Justiça deve ter especial cuidado na condução dessas investigaç­ões, tanto para o cabal esclarecim­ento das suspeitas como para impedir que o poder investigat­ivo do Estado seja usado para fins políticos.

Esta é uma medida drástica demais para que seja decidida monocratic­amente

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