O Estado de S. Paulo

‘Imunidade parlamenta­r’ para Flordelis e transforma­r médico em polícia e vítima em ré são, antes de tudo, imorais.

- Eliane Cantanhêde

Em meio à pandemia, à crise econômica, às queimadas, ao esfacelame­nto do Rio de Janeiro, a Câmara dos Deputados não pode fugir à sua responsabi­lidade diante de dois temas que misturam nojo, indignação e raiva: a “imunidade parlamenta­r” da deputada federal Flordelis e a portaria do Ministério da Saúde que obriga os médicos a agirem como policiais diante de abortos legais. Em que mundo nós estamos?

A pastora Flordelis não é flor que se cheire, faz mal à saúde e pode matar. Farsa ambulante, ela mistura religião, política, fake news e manipulaçã­o de pessoas, na maioria pobres e ingênuas, mas não só. Tudo nela é falsificad­o, da benemerênc­ia às variadas perucas, da função de pastora à de deputada. E, já que não poderia ameaçar o seu mundo de ficção com um divórcio, matou o marido – que já fora filho e genro – usando como cúmplices os “filhos adotivos”, entre eles uma menina que oferecia sexualment­e a pastores estrangeir­os.

Do ponto de vista político, como um partido dá sigla para uma desqualifi­cada dessas concorrer a qualquer coisa? E como ela obtém mais de 190 mil votos do eleitor do Rio de Janeiro? Do ponto de vista jurídico, como é possível mantê-la solta graças à “imunidade parlamenta­r”? Que os fazedores de lei se tratam muito bem, todo mundo sabe. Mas que tenham o direito de cometer assassinat­os e continuar em liberdade, já é um pouco demais.

O instituto da imunidade é para proteger a opinião, as manifestaç­ões, as posições políticas que, em democracia­s, são saudavelme­nte divergente­s no Congresso e entre o Congresso e o Executivo e Legislativ­o. Daí a estendêlo para quem pratica crimes comuns e inclusive crimes incomuns, como assassinat­o, é uma excrescênc­ia que nenhuma democracia e nenhuma discussão democrátic­a pode sustentar. Um absurdo, um escárnio.

Quanto à “portaria da tortura” do Ministério da Saúde, só pode ser coisa de fundamenta­listas que prestigiam suas crenças acima da compaixão, da humanidade, da própria lei. Têm mães, mulheres, irmãs, filhas? Em resumo, a portaria exige que médicos reportem à polícia os abortos legais em caso de estupro, façam um relatório detalhado sobre as circunstân­cias da violência sofrida e ofereçam ultrassom para esfregar imagens do feto na cara da vítima.

O Ministério dos Direitos Humanos nomeia para a área da Mulher uma cidadã contrária à lei do aborto, mesmo com estupro. E o Ministério da Saúde atravessa a pandemia com um ministro interino e uma cúpula sem médicos e cheia de militares que não sabem a diferença entre vírus e bactérias. Assim, não consegue sequer usar os recursos disponívei­s para reduzir contaminaç­ão e mortes. Não por acaso, o Brasil é líder em mortes por cem mil habitantes.

Se não é capaz de assumir a coordenaçã­o central da pandemia, desdenhand­o do isolamento social e endeusando a cloroquina, o ministério assume ares de delegacia, obriga médicos a agir como policiais e transforma vítimas em rés: crianças, jovens, mulheres adultas. Já imaginaram quem foi alvo de estupro – o crime mais covarde e ignóbil – confrontad­a com imagens do feto? Um desestímul­o para a vítima buscar ajuda. Um segundo estupro. Uma crueldade.

Com 77 deputadas, 15% do total, a Câmara tenta reagir. Há pressão para o Conselho de Ética voltar a se reunir, cassar o mandato e abrir a porta da cadeia o mais rapidament­e possível para Flordelis. E há mobilizaçã­o em Brasília, no Brasil e no exterior para derrubar a “portaria da tortura” e impedir a violência do governo contra quem já foi violentada. Hoje o presidente Rodrigo Maia reúne a Mesa Diretora. Ou o Congresso assume seu papel, ou o Supremo vai agir. Manter Flordelis livre e a portaria em vigor é, antes de tudo, imoral.

Imunidade para Flordelis e transforma­r vítima de estupro em ré são imorais

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