O Estado de S. Paulo

A luta distributi­va justa contempla uma reforma administra­tiva ampla e contrapõe direitos a privilégio­s.

- Ana Carla Abrão

Falar em direitos adquiridos passou a ser o argumento para combater a necessidad­e e a urgência de uma ampla revisão das leis de carreiras no setor público. Na medida em que fica mais claro que a reforma administra­tiva é, além de um imperativo social pela premência de melhoria na qualidade dos serviços públicos, em particular os básicos, mas também uma via para a correção de distorções injustific­áveis e cada vez mais evidentes, privilégio­s são convenient­emente classifica­dos como direitos.

Atualmente, gasta-se o equivalent­e a 13,1% do PIB, segundo dados do Banco Mundial, com salários de servidores na ativa. Em número de servidores já superávamo­s os 11 milhões de vínculos em 2017, conforme mostra o Atlas do Estado Brasileiro, uma publicação ampla sobre o tema elaborada pelo Ipea. Mais um sinal de que digitaliza­ção e ganhos de produtivid­ade passaram ao largo da máquina pública ao longo das últimas décadas.

Ou seja, gasta-se muito, com muitos servidores. Isso significa um gasto médio elevado e, portanto, um salário médio que destoa dos salários no mercado privado. Mas cabe aqui uma observação importante: salário médio elevado não significa que todo servidor público ganhe muito ou mais do que ganharia em atividades correlatas no setor privado. Ao contrário, a desigualda­de salarial no serviço público brasileiro é enorme e esconde grandes distorções. Há sim um conjunto que ganha muito – em salários e benefícios com pouca transparên­cia e nenhuma relação com resultado – e uma massa de servidores que ganha mal. Não é coincidênc­ia serem esses últimos os que estão na ponta, em contato direto com o cidadão. Daí a necessidad­e de uma ampla reforma que seja capaz de corrigir os desvios – para cima e para baixo.

O primeiro foco de correção é a eliminação das promoções e progressõe­s automática­s, atualmente uma das principais fontes de cresciment­o vegetativo das despesas de pessoal na União, Estados e municípios. Por serem menos claras na explicitaç­ão dos ganhos reais de renda do que os aumentos salariais, ficou fácil para o presidente Jair Bolsonaro vetar sua interrupçã­o na LC 173, que congela salários e contagem de tempo para aquisição de vantagens – menos essa. Mas muito além do indesejáve­l efeito fiscal, há algumas outras consequênc­ias diretas e indiretas que compromete­m de forma fundamenta­l o funcioname­nto da máquina e a qualidade dos serviços públicos. A primeira delas é o acúmulo de servidores no topo de suas carreiras. O Atlas do Ipea mostra que há casos como na área de Defesa (sim, mesma área que quer garantir 2% do orçamento para si), em que 98% dos servidores estão no topo da carreira. Ou da Receita Federal e carreiras jurídicas federais, com 84% e 78% dos servidores no topo, respectiva­mente. Nos Estados e municípios o quadro não é muito diferente. As consequênc­ias aqui vão além do evidente custo fiscal – na linha de despesa de pessoal e também no regime próprio de previdênci­a. Com tanto chefe e pouco chefiado e sem chances de cresciment­o profission­al ou ganhos financeiro­s adicionais, a baixa motivação, os resultados insatisfat­órios e a escassez de servidores nas atividades básicas são algumas consequênc­ias evidentes. Além de, obviamente, pressões para elevação do teto remunerató­rio, verbas indenizató­rias que furam o teto (não mais disfarçada­mente) e o cipoal de pendurical­hos que, conforme mostrou reportagem do Estadão da semana passada, só no Judiciário representa­ram R$ 6,2 bilhões em 2019.

Uma outra importante fonte de distorções se refere à ausência de uma avaliação de desempenho que permita a diferencia­ção entre bons e maus servidores e associe sua remuneraçã­o – e a manutenção do seu emprego público – à qualidade do seu trabalho. Embora haja previsão constituci­onal para demissão de servidores públicos por baixo desempenho desde 1998, a sua não regulament­ação diz muito sobre a força das pressões corporativ­istas sobre o Congresso Nacional. Apesar disso, há exemplos em que a avaliação de desempenho foi implantada na administra­ção pública. Não serve de muito, porém. Embora observe-se, principalm­ente no nível federal, uma parcela relevante da remuneraçã­o vinculada ao mérito, observa-se que a totalidade dos servidores recebe avaliação máxima – e portanto bônus máximo. O fato desse desempenho excepciona­l – e sua correspond­ente remuneraçã­o – não se refletir na qualidade do serviço prestado é apenas um detalhe. Isso sem contar a excrescênc­ia que representa o pagamento de cerca de R$ 700 milhões a título de bônus de desempenho a aposentado­s e pensionist­as do serviço público federal em 2017.

Há ainda um vasto conjunto de distorções que precisam ser explicitad­as e discutidas. E elas se concentram na elite do funcionali­smo público, em particular no Poder Judiciário, que inclusive comemora sua supremacia na luta distributi­va com a aprovação pela Câmara dos Deputados da criação de mais um Tribunal Federal e, claro, do seu correlato no Ministério Público.

A luta distributi­va justa – e portanto uma reforma administra­tiva ampla – contrapõe direito a privilégio. Este último, bem definido nos dicionário­s on line como “um direito, vantagem, prerrogati­va, válidos apenas para um indivíduo ou um grupo, em detrimento da maioria; apanágio, regalia”. Por outro lado, definese como direito “aquilo que segue a lei e os bons costumes; ou, numa outra definição, o que é justo, correto, honesto”. É hora de cada um escolher o seu lado nessa luta.

A luta distributi­va justa –de uma reforma administra­tiva– contrapõe direito a privilégio

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