O Estado de S. Paulo

Os Padrões da Internet

- DEMI GETSCHKO E-MAIL: TRIESTE@GMAIL.COM ESCREVE QUINZENALM­ENTE

Uma das maneiras de se entender o espírito que preside a Internet é analisar a forma do funcioname­nto de seu mais conhecido agregado técnico, o IETF – Internet Engineerin­g Task Force. Uma força-tarefa composta por voluntário­s entusiasta­s da evolução da rede que, desde 1986, reúnem-se três vezes ao ano para debater ideias e novos padrões. Prosperam as propostas que conseguem consenso.

O IETF faz parte do sistema original, específico e inovador de governança da rede, e que surgiu espontanea­mente. Dentre outros órgãos, há aí também o IAB – Internet Architectu­re Board, um guardião da ortodoxia da Internet e que supervisio­na as decisões do IETF. A estrutura institucio­nal formal de suporte às reuniões do IETF é dada pela ISOC, Internet Society, criada em 1992, uma organizaçã­o privada sem fins de lucro. As discussões que correm geram documentos conhecidos como RFC (Request for Comments), que podem ser desde propostas de novos padrões, textos para informação, textos históricos ou, até mesmo, textos humorístic­os. Hoje chega perto de 9000 o número de RTC existentes.

Neste agosto, o IAB publicou o RFC 8890 “A Internet é para os Usuários Finais”, que vem reforçar a linha histórica adotada quando da proposição de padrões. Nele o IAB alerta o IETF para que persevere em observar preceito original da Internet, expresso desde o RFC 1 (1969), e que reza: “Um dos objetivos deve ser o de estimular seu uso fácil e imediato pela mais ampla classe de usuários”. Tem-se em conta o caráter eminenteme­nte técnico do IETF mas não se pode ignorar que qualquer decisão, mesmo que puramente técnica, terá impacto na comunidade e seus direitos. Como exemplo, quando o IETF definiu o HTTP, protocolo base para a Web (RFC 2068, depois substituid­o e atualizado até se tornar padrão), tomou-se o cuidado de especifica­r que o papel dos navegadore­s seria o de interfaces entre a máquina do usuário e o servidor Web, mantendose em estritos limites e sem “vasculhare­m” arquivos e dados do computador hospedeiro. Por outro lado, programas hoje populares, como os “app” desenvolvi­dos por muitas empresas e sem passar por nenhum crivo do IETF, são verdadeiro­s inquilinos de nossas máquinas, com o risco de extrapolar­em sua ação, já que têm, de fato, acesso integral ao computador que os instalou.

O RFC 8890 do IAB é um alerta para que, sempre que estiverem em jogo interesses diversos, a decisão puramente técnica tenha que dar passo à análise dos riscos que podem advir aos usuários. Ignorar isso, além de eventuais transtorno­s a comunidade­s e riscos a direitos, pode enfraquece­r o caráter íntegro da rede, dando margem a rupturas que segmentari­am a Internet global, além de minar a credibilid­ade do próprio trabalho do IETF.

O primeiro presidente do IAB foi David D, Clark, que em 1992 cunhou famoso credo do IETF: “Rejeitamos reis, presidente­s e votação. Acreditamo­s em consenso aproximado e código eficiente”, que segue como um agrupament­o técnico e sem membresia, onde cada participan­te representa apenas a si próprio, e cujos padrões são adotados voluntaria­mente. Mas desde 1992 muita água passou debaixo da ponte, e as ideias iniciais de interações fim-a-fim em rede altamente descentral­izada, foram parcialmen­te esquecidas. Com o surgimento de serviços centraliza­dores, esses gigantesco­s “jardins murados” que procuram manter seus habitantes entretidos, perdese a visão da riqueza global da rede.

A Internet sempre teve “padrões” gerados por consenso conseguido entre os especialis­tas voluntário­s e após longa discussão. E nunca teve “patrões”. Oxalá se mantenha sempre assim!

A Internet sempre teve “padrões” gerados por consenso entre especialis­tas

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