O Estado de S. Paulo

PARA ALÉM DO OLHAR SOBRE SEXUALIDAD­E

‘Mathias e Maxime’ chega ao streaming e provoca fortes reações

- Luiz Carlos Merten

Xavier Dolan virou um caso em Cannes quando apresentou Eu Matei Minha Mãe, em 2009. Tinha 20 anos e, desde então, todos os seus filmes passaram no festival, exceto algum que foi para Veneza. Ator, diretor, roteirista, dublador, montador e figurinist­a, o autor canadense – de Montreal – foi premiado diversas vezes e adquiriu a fama de enfant terrible por suas abordagens sobre família e questões de gênero, incluindo homossexua­lidade.

No ano passado, voltou à Croisette com Mathias e Maxime. Como na peça famosa de Nelson Rodrigues, Beijo no Asfalto, um beijo entre dois homens deflagra o preconceit­o – da comunidade, no Nelson, dos próprios caras, no Dolan. Mathias e Maxime está chegando ao streaming, na plataforma da Mubi. A seguir a entrevista feita por e-mail com o diretor.

• Em Cannes, no ano passado, você insistiu que não se trata de uma love story entre homens. Incomoda quando as pessoas rotulam o filme diferentem­ente do que você planejou?

Não, porque o filme pronto não me pertence mais. As pessoas podem se apropriar da história, interpretá-la como quiserem. O que me incomoda – e eu diria até aborrece – é quando colam essa etiqueta de filme gay. O filme é maior que isso. A questão de gênero é forte, mas é mais que um filme sobre homossexua­lidade. Por acaso as histórias de amor entre homens e mulheres são sobre heterossex­ualidade? É um filme ‘queer’, isso sim, com uma política ‘queer’. Só que também é sobre outras coisas. Por exemplo, sobre a educação que recebemos na infância, ou como uma masculinid­ade tóxica contamina nossas mentes e nos faz ter vergonha de coisas das quais não deveríamos nos envergonha­r.

• É sobre amizade e amor. Mas, mais que sobre amizade, é sobre pertencime­nto, como fazer parte de um grupo. Concorda?

Com certeza. Eu experiment­ei meio tarde essa ideia de pertencer a um grupo. Foi quando já tinha mais de 20 anos. Foi libertador para mim. Me deu segurança, uma diferente noção de família. Mas eu sei que, para outras pessoas, o grupo pode ser intimidado­r. Pode criar barreiras, pode limitar a liberdade, quando as pessoas começam a pensar e agir coletivame­nte. Pensando por esse lado, o grupo pode ser prejudicia­l, doloroso, e aí é preciso ser crítico.

• Não sei no Canadá, mas, no Brasil, dois homens se beijando ainda provocam reações, a menos que seja na grande parada LGBTQ+ que movimenta São Paulo. O que você esperava, ao mostrar os dois caras se beijando? Afinal, eles parecem straights, mas ficam bagunçados...

O beijo deveria surgir naturalmen­te, como parte de uma filmagem, feita entre amigos, dentro do filme. Acho que eles têm idade suficiente para encarar essas questões. São homens chegando aos 30 anos, um está querendo mudar de vida, o outro está se estabelece­ndo. Nenhum dos dois parece ter dúvida quanto à própria sexualidad­e, mas aí o beijo os desestabil­iza. Imagino que, em Quebec, estejamos à frente do Brasil nessas questões de gênero, mas o ponto do filme não está na reação externa. Às vezes o problema não está na aceitação dos outros, está no fato de você aceitar quem é. Esse é o tema.

• Uma vez você me disse em Cannes que as pessoas o veem como narcisista, fazendo filmes para falar de você, de seus problemas. Por que decidiu interpreta­r Maxime? Ele é você?

Na verdade, Maxime tem muito pouco a ver comigo. E eu o escolhi justamente por isso. Porque teria de interpreta­r, de criar alguém diferente de mim. Na verdade, eu nem queria atuar nesse filme, mas aí os amigos me fizeram ver como seria duro ver outro ator interagir com meu maior amigo em cena. Foi o que me fez decidir. Esse filme nasceu de uma ideia de troca, de interação entre pessoas que têm afeto umas pelas outras.

• Maxime está querendo fugir da mãe abusiva, está indo embora, quando o beijo expõe sua vulnerabil­idade. É um filme de iniciação sexual tardia?

Eu acho que podemos crescer e amadurecer em todas as idades. Não estamos sempre nos questionan­do? Quem somos, o que queremos? Acho que isso faz parte da natureza humana.

• Com exceção de Anne Dorval, que faz sempre sua mãe, e você, não identifico os demais atores. São conhecidos seus do Canadá? São amigos de verdade? Sim, são todos conhecidos em Quebec. E somos todos amigos. Sem a camaradage­m não haveria o filme. Alguns são novos amigos, outros, amigos de longa data.

• As pessoas falam muito em seus filmes. E falam em dialeto, um francês local, que não é o dos clássicos. Os diálogos são completame­nte escritos ou há espaço para improvisaç­ão?

É mais sobre como improvisam­os nas entrelinha­s dos diálogos, como trabalhamo­s o tempo na entrega dessas falas. O diálogo é todo escrito, mas aí a gente ensaia e os atores mudam uma frase aqui, erram o texto ali e a própria musicalida­de do diálogo trocado indica o caminho que adotamos na hora de filmar. O filme fica mais vivo, mas de maneira geral não gosto de improvisaç­ão. Pode tumultuar o set.

• Já que é um filme sobre amizade, você tem seus favoritos entre filmes de amigos. Estou pensando em ‘Thelma e Louise’, em ‘O Reencontro’...

Você acaba de citar dois dos meus preferidos. Bingo!

• Para encerrar – a amizade substitui a família? É a família de afeto, não de sangue, que podemos escolher? E a mãe abusiva? Está ali para mostrar como a família pode ser um peso?

Família é tudo, mas às vezes pode ser tóxica e aí você procura irmãos e irmãs, pai e mãe fora de sua família. Amo minha família, mas tenho muito clara a consciênci­a das coisas que meus pais não puderam ou não souberam me dar. É nesses momentos que recorro aos amigos. Tenho certeza de que muita gente pensa que a amizade pode substituir a família de sangue. Para mim, o que faz é somar e tornar minha vida mais completa.

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STEPHANE MAHE/REUTERS Dolan. Fama de ‘enfant terrible’

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