Índio isolado mata sertanista com flecha
Com histórico de luta pela preservação de índios isolados, Rieli Franciscato foi atingido anteontem em Rondônia
O sertanista Rieli Franciscato, de 56 anos, mediava anteontem conflito em Rondônia quando foi atingido no tórax pela flecha de um índio isolado. Morreu horas depois.
Em vídeo feito recentemente na floresta de Rondônia, um integrante de uma expedição pergunta ao sertanista Rieli Franciscato qual Brasil ele queria para o futuro. Exausto após subir um morro, o paranaense de 56 anos – destes, 30 de serviços prestados à proteção de índios isolados na Amazônia –, hesita por um momento, diz que ainda está sem ar, para a diversão dos indígenas que o acompanham. Ele olha, então, para a imensidão da mata abaixo e comenta: “O Brasil que quero é que isso aqui seja preservado não só para os índios, mas para toda a população do entorno que é beneficiada pela reserva”.
Na Terra Indígena Uru-euwau-wau, onde foi realizada a gravação, nascem rios que abastecem de água potável boa parte da população de Roraima. Rieli estava ali para vistoriar a situação das aldeias isoladas que enfrentam a ação de grileiros e todos os tipos de invasores. Mas, por uma trágica ironia, foi um índio isolado e acuado que acertou o sertanista com uma flecha na tarde de anteontem num sítio na divisa da reserva, no município de Seringueiras. Rieli não resistiu ao ferimento no tórax e morreu horas depois.
Rieli coordenava a Frente de Proteção Etnoambiental Urueu-wau-wau, uma das unidades de proteção a aldeias de índios sem contato com não indígenas na Amazônia. Como passou a fazer com muita frequência nos últimos meses, ele tentava impedir um conflito na região. Em abril, a liderança indígena Ari Uru-eu-wau-wau, que denunciava extração ilegal de madeiras, foi assassinado com golpes na cabeça, em Jauru, também em Rondônia.
Além disso, Rieli também estava preocupado com a possibilidade da pandemia da covid-19 atingir o grupo. Os isolados podem não suportar nem uma gripe de vírus comum.
A precariedade da Fundação Nacional do Índio (Funai), no entanto, era visível na ação. O sertanista não tinha assistentes e, após receber a notícia da presença de isolados no sítio, foi acompanhado apenas por dois policiais militares e um amigo. Os isolados reagiram com flechadas à chegada da missão indigenista. Os policiais e o amigo do sertanista conseguiram se proteger atrás da viatura, mas Rieli foi atingido no tórax.
Um dos policiais relatou, em áudio, o que ocorreu: “O Rieli começou a subir um morrinho assim, aí a gente só escutou o barulho da flecha, pegou no peito dele. Aí ele deu um grito, ‘oi...’, arrancou a flecha e voltou para trás correndo. Ele conseguiu correr de 50 a 60 metros e já caiu praticamente morto”.
Companheiro de décadas de Rieli, o sertanista Sydney Possuelo afirmou que a circunstância da morte “demonstra o descaso e a irresponsabilidade do governo Bolsonaro em relação às questões indígenas que envolvem os índios e os funcionários das Frentes de Proteção Etnoambientais, que são a vanguarda dos trabalhos na selva”. “Rieli pediu auxílio à polícia porque não tinha funcionários para acompanhá-lo”, disse.
Coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai, Ricardo Lopes Dias afirmou que a fundação “lamenta profundamente”. “Com mais de três décadas de serviços prestados na área, deixa um imenso legado para a política de proteção desses povos.” O delegado federal Marcelo Augusto Xavier, presidente da Funai, não se manifestou até a conclusão desta edição.