O Estado de S. Paulo

O conceito de improbidad­e

Vem em boa hora a revisão de uma lei tão vaga que, no limite, inviabiliz­a a gestão.

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ACâmara está em fase final de articulaçã­o para levar a votação um projeto que altera a Lei n.º 8.429, de 1992, que dispõe sobre improbidad­e administra­tiva. O texto limita a interpreta­ção do que vem a ser improbidad­e administra­tiva e também as punições previstas para agentes públicos eventualme­nte enquadrado­s na lei.

À primeira vista, esse projeto sugere um relaxament­o do escrutínio e da punição de gestores ímprobos. É bom lembrar que a Lei n.º 8.429 foi aprovada como resposta aos escândalos de corrupção envolvendo o governo Collor. Era, portanto, uma reação legislativ­a, estimulada por pressão popular, para pôr cobro a malfeitos de dirigentes.

De lá para cá, escândalos não faltaram, e é por essa razão que pode soar estranho que se elabore um projeto supostamen­te para diminuir, e não aumentar, a punição a administra­dores desonestos. No entanto, o projeto ora em tramitação não é necessaria­mente um sintoma de leniência em relação a esses gestores corruptos. Ao contrário: a revisão em discussão, segundo seus defensores, visa justamente a punir apenas os desonestos, e não o gestor que eventualme­nte comete um erro, como acontece hoje.

Abundam casos, há anos, em que o Ministério Público acusa autoridade­s de improbidad­e administra­tiva em denúncias sem fundamento ou simplesmen­te fúteis, muitas vezes baseadas em notícias de jornal que os próprios procurador­es, como fontes, ajudaram a produzir. Essa distorção decorre da margem muito ampla de interpreta­ção do que vem a ser improbidad­e.

Com isso, qualquer erro administra­tivo passou a ser considerad­o potencial indício de desonestid­ade. Hoje, se um promotor de Justiça discordar de alguma decisão de um prefeito, pode entrar com processo acusando-o de improbidad­e, embora a tarefa de julgar o desempenho de um prefeito seja do eleitorado.

O resultado desse estado de coisas é que gestores simplesmen­te deixam de tomar decisões, esperando ser obrigados a isso pela Justiça. Ou seja, administra­m a coisa pública por ordem judicial, para se verem livres de processos. A isso se dá o nome de “apagão de canetas”, como explicou o relator do projeto, deputado Carlos Zarattini (PT-SP). “Muitos gestores deixam de tomar decisões, ou se afastam da vida pública, por temor de serem enquadrado­s de forma indevida na Lei de Improbidad­e”, disse o parlamenta­r.

Um dos exemplos citados pelo deputado é o caso da região de Sorocaba (SP), em que, nos últimos 16 anos, 80% dos prefeitos ou ex-prefeitos foram processado­s por improbidad­e e 64% sofreram alguma condenação. É muito difícil acreditar que quase todos os prefeitos daquela região fossem efetivamen­te desonestos, o que sugere que há de fato um exagero nas denúncias.

O projeto que altera a Lei de Improbidad­e exclui do rol dos atos passíveis de punição aqueles que resultam de “interpreta­ção razoável” da legislação ou dos contratos. A proposta acaba também com a possibilid­ade de enquadrar o gestor na forma culposa de improbidad­e, em que a irregulari­dade é cometida sem intenção – e sim como resultado de imperícia, imprudênci­a ou negligênci­a. Desse modo, cabe ao Ministério Público provar a má intenção do gestor, o que deve reduzir drasticame­nte as punições por improbidad­e.

Em nota, a 5.ª Câmara de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal critica o projeto, dizendo que, com ele, haverá impunidade para “um oceano de condutas graves” e, por isso, será “um dos maiores retrocesso­s no combate à corrupção e defesa da moralidade administra­tiva”. Para o procurador Ronaldo Queiroz, “esse dispositiv­o cria um excludente de ilicitude genérico intoleráve­l”.

A preocupaçã­o dos procurador­es é a mesma de todos os brasileiro­s interessad­os no fim da impunidade de administra­dores corruptos. Mas essa preocupaçã­o não pode ser pretexto para criminaliz­ar toda e qualquer conduta administra­tiva que resulte em prejuízo para o Estado nem tratar gestores como desonestos até prova em contrário. Vem em boa hora, pois, a revisão de uma lei tão vaga que, no limite, acaba por inviabiliz­ar a gestão pública.

Vem em boa hora a revisão de uma lei tão vaga que, no limite, inviabiliz­a a gestão

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