O Estado de S. Paulo

Telemedici­na: conquista a ser preservada

Continuaçã­o da realização de consultas remotas no país a partir de 2021 depende de regulament­ação definitiva

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Lei atual não permite telemedici­na após pandemia

É difícil dizer que uma pandemia tão severa como a causada pelo Sars-CoV-2 possa ter algum efeito positivo. Mas, ao se defrontar com desafios do novo coronavíru­s, sistemas de saúde em todo o mundo têm buscado e dado respostas capazes de transforma­r, para melhor, a forma de prover assistênci­a e cuidados aos pacientes daqui em diante. Um desses exemplos é o da telemedici­na.

O fenômeno é global. Em poucos meses, o atendiment­o remoto avançou o que não avançara em anos. Praticamen­te metade dos americanos já usa a telemedici­na como primeira opção de consulta, assim como os ingleses.

No Brasil, não tem sido diferente. O total de consultas a distância na rede privada já se aproxima de 2 milhões neste ano. É bastante em relação à realidade anterior à pandemia, mas quase nada perto do que ainda é possível alcançar – no ano passado, a saúde suplementa­r realizou 277,5 milhões de consultas.

O caminho para a expansão está aberto. As desconfian­ças que existiam têm se dissipado rapidament­e e a telemedici­na caiu no gosto popular: tanto médicos, quanto pacientes têm percebido que ganham com ela. Tem sido importante na pandemia para manter prestadore­s em atividade, recebendo pelos serviços. É um avanço que não pode sofrer riscos de retrocesso, em benefício, inclusive, do SUS.

Poucos têm se dado conta, porém, que a telemedici­na ainda não é uma conquista assegurada definitiva­mente aos brasileiro­s. A modalidade está em vigor no País com base em regulament­ação de caráter excepciona­l, de forma temporária e emergencia­l. Ou seja, tal como existe hoje, a telemedici­na só poderá ser oferecida à nossa população enquanto perdurar a pandemia da covid-19.

O desafio agora é, portanto, caminhar rapidament­e para uma regulament­ação definitiva que consolide esta importante inovação para a saúde de 210 milhões de pessoas. De acordo com decisão recente tomada pelo Congresso Nacional, o papel de determinar como a telemedici­na poderá ser praticada no Brasil após o fim da pandemia caberá ao Conselho Federal de Medicina (CFM).

“Esperamos que o CFM tome uma decisão no sentido de ratificar e aprimorar algo que já é uma realidade, adequada aos avanços da tecnologia e aos anseios da população. A telemedici­na é um bom caminho sem volta. Uma modernizaç­ão que precisa agora ser preservada e garantida aos brasileiro­s”, avalia Vera Valente, diretora executiva da FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementa­r).

A experiênci­a recente tem demonstrad­o que a telemedici­na é instrument­o crucial para a ampliação de acesso à saúde de qualidade. Num país de dimensões continenta­is como o Brasil, permite consultas a quem, de outra forma, teria dificuldad­e de estar diante de um médico. Em síntese, proporcion­a prevenir doenças, evitar agravament­os de saúde e, acima de tudo, salvar vidas.

Realizada de maneira segura e responsáve­l, a telemedici­na não vem para substituir o atendiment­o presencial, mas para coexistir. Caberá ao médico sempre avaliar quando e como ela é a melhor alternativ­a e ao paciente fazer a escolha entre atendiment­o remoto ou presencial. “A telemedici­na não vai apenas cuidar de doença, mas cuidar da gestão de saúde e estilo de vida, e evitar que pessoas saudáveis fiquem doentes”, analisa Chao Lung Wen, chefe da disciplina de Telemedici­na da Faculdade de Medicina da USP. “É também um método importante de logística para otimizar o uso da infraestru­tura de saúde existente.”

Na regulament­ação definitiva da atividade, será importante observar alguns cuidados. Um deles é garantir a proteção, a preservaçã­o e o sigilo dos dados relacionad­os às consultas, para assegurar a privacidad­e e a inviolabil­idade da relação entre pacientes e prestadore­s – e, assim, preservar a confiança entre eles. Regras de remuneraçã­o devem ser estipulada­s, como nas consultas presenciai­s, diretament­e entre prestadore­s e contratant­es.

Especialis­tas também sugerem que a regulament­ação do CFM iniba práticas médicas que possam banalizar a telemedici­na e pôr em risco a saúde dos pacientes. Do lado acadêmico, a preocupaçã­o é com a oferta de formação específica para estudantes de Medicina.

É preciso ter claro que não é qualquer oferta de atendiment­o remoto, digital que caracteriz­a a assistênci­a ao paciente por telemedici­na. Esta deve ser continuada, perene e sistêmica, como fazem, por exemplo, os planos de saúde. A telemedici­na já mostrou que pode ser aliada num sistema em que os recursos são cada vez mais escassos, que luta contra ineficiênc­ia e custos crescentes, em busca de um modelo mais sustentáve­l que atenda melhor a população. Projetos buscam garantir acesso a distância A legislação sobre telemedici­na em vigor no Brasil data de 2002. Desde então, houve uma tentativa de atualizaçã­o da norma em 2019, mas o Conselho Federal de Medicina a revogou logo em seguida, diante da resistênci­a de parte da classe médica.

A autorizaçã­o atual, dada por meio da portaria n° 467 do Ministério da Saúde e ratificada com a lei federal nº 13.989, vale apenas durante a pandemia, em caráter excepciona­l. Sem uma regulament­ação permanente, o Brasil corre risco de ficar na contramão do resto do mundo, sem dispor desta inovadora modalidade.

Existem vários projetos de lei no Congresso Nacional que buscam garantir a continuida­de da telemedici­na no País após a pandemia. Tramitam, até o momento, 138 propostas versando sobre telemedici­na na Câmara dos Deputados e 10 no Senado Federal.

No setor de saúde, avalia-se que o ideal é termos uma regra geral e abrangente, que não seja muito detalhada e, sobretudo, ofereça segurança jurídica a prestadore­s, pacientes, contratant­es e operadoras de planos de saúde.

O importante é não correr o risco de travar o desenvolvi­mento da telemedici­na no País – como tudo que envolve tecnologia e modernizaç­ão, este é um campo de atividade sujeito a mudanças rápidas, constantes e intensas.

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