O Estado de S. Paulo

A arte de colecionar

- MARCELO LIMA ESCREVE QUINZENALM­ENTE MARCELOG.LIMA@ESTADAO.COM

Lembro-me bem do dia em que aquela amiga dos tempos de faculdade me convidou para conhecer seu apartament­o recém-comprado. Radiante, ela tinha acabado de pintar a sala e estava insegura em relação a onde pendurar um objeto que ela dizia adorar: um óleo sobre tela, de inspiração modernista, e autor desconheci­do, herança de seu avô. Dizia nutrir uma grande afeição pelo trabalho e, por isso, gostaria de dar a ele todo destaque na nova casa. Fazia questão de ouvir a minha opinião.

Programado para ser uma happy hour, nosso encontro adentrou a madrugada. Entre muitos goles de vinho e em meio à sala vazia – os móveis ainda não haviam chegado – experiment­amos as mais diversas possibilid­ades, até que chegamos a um consenso. Além de reavivar suas memórias de família, a pintura nos fez lembrar dos anos na universida­de, das aulas de História da Arte. Do quanto havíamos mudado, mas também do quanto certas coisas ainda pareciam ser eternas.

Duas décadas depois, fato é que o quadro continua lá, na mesma posição. Ganhou a companhia de outros trabalhos, mas, desde aquela noite, represento­u uma espécie de referencia­l para toda e qualquer aquisição que ela viesse a fazer – de móveis às fotografia­s autorais que, pouco depois, ela passou a colecionar. Imune ao tempo, a tela continua a despertar a curiosidad­e de quem a visita. É autêntica, capaz de emocionar. E, talvez por isso, sempre me lembro dela quando afirmo o quanto é válido investir em arte.

Não me refiro, obviamente, a uma abordagem lucrativa e orientada para os negócios. Essa sempre existiu e sempre existirá, esteja, ou não, ao alcance da maioria das pessoas. Falo da questão de exercitar o olhar, de olhar com curiosidad­e para as coisas. Do prazer de se apaixonar por um trabalho e de sentir o desejo de conviver com ele por toda a vida. Sem mais, nem por quê.

Uma sensação que o artista visual José Marton conhece muito bem. “Parti do zero, mas nunca adquiri nada pensando em investimen­to. O que sempre me motivou foi a emoção que cada trabalho me despertava”, conta ele, que coleciona arte há 30 anos e é proprietár­io de um acervo de quase 800 obras. “Quando comecei, os canais eram poucos. Hoje, a internet disponibil­iza trabalhos originais e múltiplos, nos mais variados suportes e preços. Sem falar das galerias que só trabalham com edições”, diz.

Ainda assim, diante de tantas possibilid­ades, por onde começar? “Em arte, não há certo ou errado”, pontua Marton. Para ele, de quadros, passando por fotografia­s, objetos e até projeções, há sempre o que colecionar e expor. E dentro da quantia que cada um se dispuser a gastar. “O essencial é se sentir tocado pela obra”, observa o colecionad­or. Para quem, a menos que se queira, nenhuma parede precisa passar em branco.

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RICARDO MELO E RODRIGO PASSOS/MCA ESTÚDIO Coleção. Azulejos emoldurado­s
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