O Estado de S. Paulo

Além dos sapatos

-

Se quiser fazer política, procurador deve deixar o Ministério Público, diz o CNMP.

OConselho Nacional do Ministério Público (CNMP) aplicou, na terçafeira passada, pena de censura ao procurador da República Deltan Dallagnol, que até recentemen­te chefiava a força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba. Depois de vários adiamentos a mando da Justiça e manobras procrastin­adoras por parte da defesa de Deltan Dallagnol, a ponto de levar o processo à beira da prescrição – que ocorreria hoje –, o CNMP afinal decidiu tomar alguma providênci­a sobre o caso. E não poderia ser mais eloquente.

Por 9 votos a 1, o CNMP considerou que o procurador foi além do simples exercício da liberdade de expressão ao manifestar, em redes sociais, oposição à candidatur­a de Renan Calheiros na eleição para a presidênci­a do Senado, em 2019. Deltan Dallagnol havia dito, numa série de tuítes, que a escolha de Renan Calheiros acarretari­a um retrocesso no combate à corrupção. Num deles, escreveu: “Se Renan for presidente do Senado, dificilmen­te veremos reforma contra a corrupção aprovada. Tem contra si várias investigaç­ões por corrupção e lavagem de dinheiro”.

Que o senador Renan Calheiros tem contas a acertar com a Justiça, todos sabem. Que, nessa condição constrange­dora, seria lamentável que ele fosse conduzido à presidênci­a do Senado, cargo de enorme importânci­a institucio­nal, tampouco parece difícil de contestar. No entanto, o sr. Dallagnol, malgrado possa emitir a opinião que bem entender, foi bem além disso em sua manifestaç­ão pública: fez campanha política contra Renan Calheiros.

Procurador­es da República não podem se envolver em política. Como está claro em normativa de 2016 da Corregedor­ia Nacional do Ministério Público, é vedado a integrante do Ministério Público expressar “ataques de cunho pessoal, direcionad­os a candidato, a liderança política ou a partido político, com a finalidade de descredenc­iá-lo perante a opinião pública em razão de ideias ou ideologias de que discorde o membro do Ministério

Público”.

Foi exatamente o que o sr. Dallagnol fez. Ainda que fosse apenas um integrante qualquer do Ministério Público, já estaria desautoriz­ado a fazer campanha contra este ou aquele político ou partido. Mas o sr. Dallagnol não era um qualquer: jogou todo o peso de sua função como líder da Lava Jato, incontestá­vel referência de combate à corrupção, para enxovalhar um candidato à presidênci­a do Senado.

“O membro do Ministério Público deve se abster de manifestaç­ões públicas de discordânc­ia inconteste a determinad­o candidato ou partido político, pois ao fazê-lo também compromete a isenção e a credibilid­ade do Ministério Público

perante a sociedade”, argumentou o relator do caso no CNMP, Otavio Rodrigues.

O relator lembrou ainda que a função do Ministério Público, em processos eleitorais, é apenas a de cuidar para que haja lisura no pleito, o que já é bastante. Mas não é de hoje que alguns integrante­s da Lava Jato vão além dos sapatos. Seus exageros contribuír­am para a desmoraliz­ação da política em si mesma, pois todos os políticos passaram a ser suspeitos até prova em contrário.

Não por outra razão, tanto a força-tarefa da Lava Jato como Sérgio Moro, ex-juiz responsáve­l pelos casos da operação, classifica­ram os processos disciplina­res contra o procurador Dallagnol como um ataque à independên­cia dos procurador­es – como se esta devesse ser irrestrita.

Mas o relator Otavio Rodrigues recolocou as coisas em seu devido lugar ao enfatizar “os imensos riscos à democracia quando se abrem as portas para agentes não eleitos, vitalícios e inamovívei­s disputarem espaços, narrativas e, em última análise, poder com agentes eleitos, dependente­s do sufrágio universal popular periódico e com a imagem estigmatiz­ada (...) por atuarem nos difíceis ambientes político-partidário­s”. E o relator recomendou que, se os procurador­es querem fazer política, que “renunciem à magistratu­ra judiciária ou ministeria­l e entrem na arena partidária, disputando votos e espaços na mídia e sem a proteção reputacion­al que a toga e a beca quase sempre emprestam aos que as vestem”.

Se quiser fazer política, procurador deve deixar o Ministério Público, diz CNMP

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil