O Estado de S. Paulo

‘Caso do arroz’ põe à prova ideário liberal do governo

Equipe econômica critica notificaçã­o do Ministério da Justiça a produtores e reforça mantra de ‘tirar o Estado do cangote’ do País

- Adriana Fernandes / BRASÍLIA

Na transição e no início do governo, nove entre dez ministros e assessores indicados pelo governo Jair Bolsonaro repetiam o mantra da nova administra­ção: “tirar o Estado do cangote” de quem trabalha e produz no País.

O discurso da época, cuidadosam­ente escolhido para marcar a posse presidenci­al e os primeiros meses de governo, trombou com a espécie de “intervençã­o” branca que o Ministério da Justiça tentou fazer ao notificar os produtores e representa­ntes dos supermerca­dos cobrando explicaçõe­s pela alta de preços dos produtos da cesta básica, especialme­nte do arroz.

A fala do cangote, que ainda hoje é usada pelo próprio presidente, foi lembrada com desalento ontem por integrante­s da área econômica que ficaram incomodado­s com a forma de atuação do governo no episódio, justamente por prejudicar um dos pilares da agenda liberal, o da liberdade econômica – que deu até nome de lei sancionada pelo presidente em setembro do ano passado. Na cerimônia, Bolsonaro voltou a repetir o mantra da retirada da mão do Estado do cangote do setor produtivo.

Documento. As razões do incômodo foram expostas no ofício encaminhad­o pelo secretário de Advocacia da Concorrênc­ia e Competitiv­idade, Geanluca Lorenzon. Ele integra o grupo dos liberais na equipe de Guedes. Em caráter restrito, o documento foi enviado para a secretária nacional de Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça, Juliana Domingues.

Segundo apurou o Estadão, há a preocupaçã­o com o risco de o presidente insistir em dar uma “canetada” no problema, o que por ora foi descartado por ele mesmo em live na noite de quinta-feira.

Além da abertura do mercado para o arroz do exterior, o meio termo encontrado para dissipar o clima foi mostrar que o Ministério da Economia está monitorand­o os preços, inclusive de outros produtos como o da construção civil, atribuição que sempre foi de responsabi­lidade da Secretaria de Política Econômica (SPE)

Entre técnicos ouvidos pelo Estadão, que falaram na condição do anonimato, há ceticismo com o efeito da medida diante do aumento da demanda no cenário internacio­nal e do dólar mais alto.

Vazamento. O documento vazou na quinta-feira e desagradou o Ministério da Justiça, que não gostou da cobrança. Nos bastidores, empresário­s reclamaram da pressão. Produtores de arroz também manifestar­am insatisfaç­ão. Um integrante da equipe do ministro Paulo Guedes avaliou que esse mercado já é competitiv­o e “não precisa se explicar sobre formação de preços”. O argumento do auxiliar de Guedes é de que não é “algo oligopoliz­ado (quando um grupo tem o domínio da oferta de produtos ou serviços) ou monopoliza­do (uma única empresa) que precisa de regulação”.

No ofício enviado, Lorenzon critica o controle de preços e alerta para o risco de a medida intimidar os agentes econômicos não imbuídos de uma atitude oportunist­a, podendo levar à situação de desabastec­imento dos produtos.

Em vídeo postado no início da manhã de ontem, a ministra da Agricultur­a, Teresa Cristina, pediu tranquilid­ade à população e disse que não haverá problemas de abastecime­nto dos produtos que estão na mesa dos brasileiro­s. “Tivemos alguns problemas com esse produto. No passado, o arroz teve um preço muito baixo durante muitos anos. Tivemos uma queda na área de produção, então, hoje, ele tem um preço mais alto. Mas ele está nas prateleira­s e vai continuar”, disse a ministra.

Segundo ela, o governo já tomou as medidas que podiam ser feitas para dar estabilida­de e equilíbrio ao preço do arroz. “O Brasil tirou a alíquota de importação para que o produto de fora pudesse entrar. É uma cota de reserva para que possamos ter tranquilid­ade de que o preço vai voltar e ser equilibrad­o”, afirmou a ministra.

Na última terça-feira, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) anunciou a redução total da alíquota de importação para uma cota de 400 mil toneladas de arroz até o fim deste ano.

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ALEX SILVA /ESTADÃO-9-09-2020 Vilão. Aumento da demanda global e valorizaçã­o do dólar fizeram preço do arroz disparar

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