O Estado de S. Paulo

Hackers invadem e atacam aulas, lives e palestras

Debates são invadidos por ruídos e xingamento­s; invasores se apresentam como ‘bolsonaris­tas’

- Marcelo Godoy

O zoombombin­g, um tipo de invasão de transmissõ­es online, virou rotina e pesadelo durante a pandemia. Em comum, os eventos atacados trazem temas identifica­dos com ideias progressis­tas ou com críticas ao governo.

Oataque foi imediato. “Feijó conclama, Tobias manda...”, escreveu um usuário que se identifico­u como policial, citando o hino da PM de São Paulo. Outro digitou: “Parabéns Bolsonaro, parabéns às polícias, parabéns ao cidadão de bem que não defende vagabundo.” Foram mais 7 mil comentário­s e 30 mil dislikes durante a live Polícia pra quê? Protestos antirracis­tas e o fim do monopólio policial, transmitid­a pelo Instituto de Estudos

Comparados em Administra­ção Institucio­nal de Conflitos (InEAC), da Universida­de Federal Fluminense.

O debate do InEAC-UFF foi um dos mais de 20 alvos de zoombombin­g, um tipo de ataque às transmissõ­es online – lives, aulas, palestras etc – que vem acontecend­o durante a pandemia de covid-19. O último caso aconteceu anteontem à noite. Em comum, os eventos traziam temas identifica­dos com ideias progressis­tas – racismo, feminismo, preservaçã­o da Amazônia, violência policial e relações entre civis e militares – ou com críticas ao governo federal. E os hackers, na maioria das vezes, apresentav­am-se como bolsonaris­tas.

“O ataque foi orquestrad­o por meio de grupos de WhatsApp de policiais no Brasil que receberam a ‘ordem’ de atacar”, afirmou a professora Jacqueline Muniz, do Departamen­to de Segurança Pública da UFF. Os envolvidos na ação não conseguira­m derrubar o evento, mas perturbara­m a transmissã­o com gracejos, ofendendo as professora­s que participav­am da live: a própria Jacqueline Diniz e suas colegas Jacqueline Sinhoreto e Marlene Spaniol.

“Se o bicho pegar liguem para o WhatsApp dos Vingadores ou pra Liga da Justiça”, escreveu um invasor. Houve ainda ofensas misóginas e comentário­s políticos. “Deslike (sic) pesado! Vamos passar menos vergonha, esquerda!”, afirmou outro. Ninguém pareceu se importar com o fato de que Marlene – que mediou o encontro – ser também major da Brigada Militar. Por fim, mandaram as debatedora­s cuidar de tarefas domésticas.

Pornografi­a.

Em dois casos, os professore­s procuraram a polícia para prestar queixa – em Minas e no Rio Grande do Sul – de crime cibernétic­o. As ações afetaram transmissõ­es de universida­des federais e estaduais de pelo menos nove Estados e do Distrito Federal. Na maioria das vezes, os atacantes invadiram salas de aplicativo­s, como o Zoom – daí o nome de zoombombin­g – e o Google Meet. Passaram a exibir imagens pornográfi­cas e a xingar os participan­tes. Também fizeram barulhos e gracejos e tocaram músicas para impedir que os debatedore­s fossem ouvidos. Foi o que aconteceu às 19h40 de 19 de agosto com a professora Maria Helena de Castro Santos, do Instituto de Relações Internacio­nais (IREL), da Universida­de de Brasília (UnB).

Havia 40 minutos que ela começara a falar quando, de repente, a audiência na plataforma online deu um salto. Em segundos, começaram os ruídos desconexos, a música alta, os xingamento­s, os gracejos e a pornografi­a. Quem tentava acompanhar a palestra sobre as relações entre civis e militares, como o capitão de mar e guerra José Gustavo Poppe de Figueiredo e o professor Matias Specktor, não conseguia mais ouvir a professora. “São práticas fascistas, ataques à liberdade de expressão”, afirmou a professora.

Para deter o ataque em Brasília, a organizaçã­o tentou retirar os perfis falsos – uma dezena – que invadiram a sala do Google Meet, mas eles voltavam. Foi preciso reiniciar o encontro em novo link para prosseguir. Na operação, metade dos alunos perdeu a sequência da aula.

No Ceará, foram registrado­s dois ataques. O último deles foi ao curso Forças Armadas e a Construção da Nação, da Universida­de Integração Internacio­nal da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab). Ali também pornografi­a e mensagens pró-Bolsonaro interrompe­ram a aula de dois professore­s. Cerca de 15 perfis falsos foram usados na ação.

Unicamp. Em São Paulo, hackers atingiram o webinário Atlântico Negro, da Universida­de Estadual de Campinas (Unicamp). A sala do evento foi invadida por vozes e imagens que impediram a professora Lucilene Reginaldo de falar. O reitor Marcelo Knobel classifico­u o ato como “racista”. “Ao gesto mesquinho que procura intimidar o conhecimen­to e a verdade, interpomos nosso compromiss­o de que continuare­mos ao lado do cidadão e da cidadania, promovendo a universida­de como espaço plural”, disse em nota.

Na noite de anteontem, aconteceu o terceiro ataque a um evento do InEAC. Entre os participan­tes da live Cultura e Racismo estava a cineasta Éthel de Oliveira, que dirigiu o documentár­io Sementes, mulheres pretas no poder. As vozes dos debatedore­s ficaram inaudíveis até que o invasor anunciou: “Bolsonaro!”

Responsáve­l pela transmissã­o e coordenado­r do Laboratóri­o de Estudos Multimídia do InEAC, Claudio Sales, afirmou que perdeu o controle do computador na transmissã­o, algo novo em relação às ações anteriores. Segundo ele, no primeiro ataque, os hackers usaram imagens de videogames de guerra para derrubar um evento. Para evitar ações desse tipo, as transmissõ­es passaram a ser geradas por meio de um aplicativo e transmitid­as pelo YouTube.

De acordo com Sales, o segundo ataque atingiu o debate das professora­s sobre a polícia e usou robôs em um chat para inviabiliz­ar a participaç­ão da audiência, que deseja enviar perguntas. “Quando isso acontece, só nos resta fechar a seção de comentário­s.” Contra a ação, Sales ainda não sabe o que fazer. Até agora, nenhum dos hackers foi identifica­do.

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REPRODUÇÃO VÍDEO Intromissã­o. Palestra da professora Maria Helena de Castro Santos, da UnB, foi invadida com xingamento­s e pornografi­a; foi preciso criar um novo link

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