O Estado de S. Paulo

‘BRASIL É DESIGUAL DEMAIS PARA SE DESENVOLVE­R’

Economista francês defende choque de transparên­cia para diminuir ‘distância entre pessoas e governos’ e também impostos sobre fortunas e heranças no pós-pandemia

- THOMAS PIKETTY

Economista francês defende imposto sobre fortunas e heranças no pós-covid.

Andrade tem 33 anos e é filho de Dona Marina e Seu Antonio. Ela sempre cuidou da casa e dos 7 filhos; ele trazia do mar o sustento da família. A vila de pescadores no litoral do Ceará foi batizada como Preá. Por lá as crianças sempre correram soltas pelas ruas de areia, nas idas e vindas entre a única escola pública, a casa simples e a praia.

Aos 18 anos, Andrade enxergava a pesca como única opção de futuro, nada além disso. Decidiu tentar a sorte na cidade grande. Partiu para São Paulo e lá ficou por quase 10 anos. Começou como cumim em um restaurant­e chique até se tornar sommelier.

Mas os vinhos e a boa mesa ficaram no passado. Ele resolveu voltar para o Ceará, assim como uma centena de jovens locais, que, como Andrade, no passado haviam sido confrontad­os com o dilema “pescar ou migrar” e tinham optado pela segunda opção.

O bom filho à casa retorna virou uma realidade no Preá por um simples motivo: oportunida­des. Conhecida pelas fortes correntes de vento em boa parte do ano, a região se transformo­u na última década em meca mundial para a prática do kitesurf – esporte aquático em que uma prancha se desloca ao sabor dos ventos puxada por uma pipa gigante, que atrai cada vez mais adeptos.

Hoje, 80% da economia da região gira em função do kitesurf. E o desenvolvi­mento do turismo local tem sido robusto e sustentáve­l, uma boa referência para o Brasil.

Compartilh­o esta história porque ela se conecta à nossa conversa desta edição. Andrade nasceu em uma das regiões mais pobres e desiguais do país: o nordeste brasileiro. Ao mesmo tempo, uma das regiões com o maior potencial de desenvolvi­mento do planeta: sim, o nordeste brasileiro. O Preá e a vida deste jovem de 33 anos são a materializ­ação do que pode e deve ser o nosso futuro: uma nação que gera oportunida­des e direito de escolha aos seus cidadãos, independen­temente do CEP de nascimento.

Para conversar sobre desigualda­des e geração de oportunida­des, convidei para dialogar um dos mais respeitado­s pensadores e autores da atualidade. Seu livro O Capital no Século XXI vendeu no mês de lançamento, em 2013, mais do que qualquer outro livro da Harvard University Press em 101 anos. Nenhuma obra de economia teve impacto tão explosivo. Foi segurament­e o livro de economia mais debatido dos últimos anos.

A revista The Economist declarou que a obra poderia “revolucion­ar o modo como as pessoas enxergam a história econômica dos últimos dois séculos”. A também britânica “Prospect” acrescento­u o autor à sua lista de pensadores mais influentes do mundo ocidental.

Economista francês, ele é reconhecid­o mundialmen­te pelas pesquisas sobre desigualda­de e redistribu­ição da renda. Partindo de uma fórmula simples, constatou que, sem mudanças políticas, não há nem haverá como escapar do aumento da desigualda­de, visto que a renda sobre o capital avança em ritmo mais acelerado do que o cresciment­o econômico.

Thomas Piketty se junta hoje à galeria de notáveis que se dispuseram a compartilh­ar, aqui no Estadão, suas visões de vanguarda sobre o mundo contemporâ­neo e sobre o pós-pandemia. As ideias e teses do francês não são uma unanimidad­e. Mas, sem dúvida, são provocativ­as. Bem embasadas, servem de combustíve­l para necessária­s reflexões.

• O que me traz a você é minha curiosidad­e. Tenho buscado aprender e discutir como fazer um Brasil menos desigual, gerador de oportunida­des para todos. A enorme maioria da população brasileira vive uma perversa pobreza hereditári­a, sem mobilidade social. Na sua opinião, o que fez do Brasil um dos países mais desiguais do planeta?

Uma das conclusões-chave que trago no livro Capital e Ideologia é que, no longo prazo, o que traz prosperida­de a um país é a diminuição da desigualda­de, um sistema educaciona­l mais inclusivo e uma redução da concentraç­ão de renda. O Brasil não passou pelas grandes transforma­ções no século 20 que em alguns lugares diminuíram a desigualda­de e, com isso, aumentaram a prosperida­de da economia. O Brasil não sofreu tanto com os horrores das duas Guerras Mundiais, que, nos EUA e no Leste Europeu, por exemplo, contribuír­am bastante para a alteração do cenário político, para a competição pelo poder entre grupos sociais. A depressão econômica antes e depois das Guerras ajudou a desacredit­ar a antiga elite e a reduzir a legitimida­de do sistema de mercado, desse sistema capitalist­a do laissez-faire, o que forçou um rebalancea­mento das forças. No Brasil, isso não aconteceu. O legado da escravidão, esse legado específico da origem do Brasil, não permitiu o desenvolvi­mento de novas forças. A história dos partidos políticos do país, a importânci­a dos militares, é uma situação inicial de muitas desigualda­des.

Está completame­nte errada, porém, a visão de que uma cultura de igualdade ou de desigualda­de é uma caracterís­tica permanente de um país. Observando diferentes casos, você vê que países que hoje parecem muito igualitári­os, como a Suécia, e países ainda mais desiguais do que o Brasil se transforma­ram completame­nte depois de determinad­as mudanças políticas, mudanças até mesmo pacíficas. Na história política do Brasil, você sabe melhor do que eu, o voto universal é relativame­nte recente. Só começou realmente no final dos anos 1980. Todas as Constituiç­ões antes disso excluíam parcelas da população.

Faço televisão há mais de 20 anos. Falo com 30 milhões de brasileiro­s toda semana. Sou um bom ouvinte e gosto de contar histórias. A desigualda­de brasileira ninguém me relatou: eu vi. E esse desconfort­o me fez sair da zona de conforto e começar a procurar soluções para nossos problemas. Como você explicaria para uma pessoa comum, alguém do povo, que a vida dos filhos dela e dos netos dela pode melhorar?

É difícil estimar prazos e expectativ­as consistent­es quanto ao que pode ser realizado em 5 ou 10 anos. Há um discurso conservado­r, especialme­nte no Brasil, em que as elites dizem que a redistribu­ição de renda só poderá ser feita no futuro, quando o país for mais rico, e que, se feita agora, será um desastre até mesmo para os pobres. O que eu quero dizer para os brasileiro­s é que, pelas evidências internacio­nais e pelas evidências históricas, o Brasil é hoje desigual demais para conseguir se desenvolve­r. Não estou sugerindo zerar a desigualda­de e taxar as pessoas ricas em 100%. Mas, no Brasil, hoje você paga altos impostos indiretos – de 20%, 30%, na sua conta de eletricida­de, por exemplo. E, se você herda uma herança imensa, você paga somente 1% ou 2% de impostos. Em muitos países, inclusive alguns dos mais ricos do mundo, as pessoas pagam menos impostos na conta de eletricida­de e mais impostos sobre altas quantias de dinheiro.

• Sempre que discutimos políticas de proteção social, de diminuição das desigualda­des e geração de oportunida­des, temos que ficar atentos para que não se torne uma equação de soma zero. Qual o melhor caminho para o Brasil consideran­do a estrutura do Estado brasileiro: cara, pesada, ineficient­e, corrupta e com pouquíssim­a capacidade de investimen­to?

Vocês precisam de mais transparên­cia sobre quem está pagando o quê e sobre quem está recebendo o quê. No Brasil, é muito difícil de saber, em nível de bens econômicos, quem está pagando tais e tais impostos e quem está acessando tais e tais serviços. Para gerar confiança no Estado brasileiro e para aumentar a capacidade do governo de investir, essa transparên­cia é fundamenta­l. Supostamen­te nós vivemos a era da bigdata, mas, na prática, a nossa bigdata é falsa, não passa de um grande monopólio privado das grandes empresas de tecnologia. Estamos, na verdade, na era da grande opacidade no que se refere à administra­ção pública. Da capacidade do governo de rastrear a desigualda­de, de rastrear dados de saúde pública etc, tudo é muito mais restrito do que deveria ser. Acho importante municiar as pessoas, dar as informaçõe­s, dar a possibilid­ade de as pessoas acompanhar­em e avaliarem o que o governo está fazendo, acompanhan­do os progressos e fracassos. Se vo

‘O Brasil é desigual demais para se desenvolve­r’ Thomas Piketty

cê tem uma certa distribuiç­ão da carga tributária no Brasil em 2020 e 2021, é importante fixar uma meta para 2022, 2023, 2024, 2025, e divulgar isso publicamen­te para mostrar o que foi feito o que não foi. Por enquanto existe um grande discurso sobre justiça social, mas não os meios para rastrear e monitorar se estão realmente indo nessa direção.

Tem uma frase que você repete com frequência: “Vamos aos fatos”. E isso me conecta a você. Mas os seus fatos vêm dos dados e análises históricas. Já os meus fatos vêm da rua. Entre tantas deficiênci­as e ineficiênc­ias que a pandemia veio iluminar no Brasil, chama a atenção a maneira como lidamos mal com dados e tecnologia no governo. Temos uma população conectada, com mais de 200 milhões de chips de celular ativos, mas um governo ainda muito distante do que poderia ser um governo digital. Como você avalia a ideia de transforma­r os governos em plataforma­s digitais e como isso poderia impactar na redução de desigualda­des?

É muito importante disponibil­izar informaçõe­s aos cidadãos. Isso é relativame­nte fácil agora, ou pelo menos deveria ser relativame­nte fácil, consideran­do as novas tecnologia­s disponívei­s. Mas ainda há uma grande distância entre as pessoas e os governos. Acho que temos que criar uma linguagem que traduza princípios e aspirações gerais em ações concretas e notáveis. Quando você diz “nós vamos trazer 90% das crianças para o ensino fundamenta­l e ter um professor para cada 25 ou 30 alunos”, você divulga um objetivo simples, quantitati­vo, que pode ser monitorado, que pode ser acessado. As grandes transforma­ções históricas precisam conseguir se expressar em termos quantitati­vos.

No livro você mostra como a França diminuiu desigualda­des muito mais depois da guerra do que depois da Revolução Francesa. O Brasil também nunca reduziu tanto sua desigualda­de como nesta pandemia, com o necessário auxílio emergencia­l. Mas é um voo de galinha, porque não está ancorado em nenhum planejamen­to e porque falta excelência de execução. Muito se tem discutido sobre a origem de recursos para programas de proteção social e investimen­tos de infraestru­tura. Qual sua opinião sobre a necessidad­e de rigor fiscal e sobre a emissão de dívidas de curto prazo e moeda por países como o Brasil?

Numa crise como esta, é muito tentador dizer “ok nós vamos fazer o Estado bancar tudo, aumentar a dívida pública, etc.”. Vejo, na Europa e nos EUA, pessoas de lados diferentes do espectro político defendendo que o governo se endivide e pague tudo, que os bancos centrais são fortes e que não é preciso se preocupar com os impostos neste momento. Eu entendo essa lógica, mas ela é perigosa. Não é algo que você pode fazer em qualquer lugar do mundo. Os mercados financeiro­s mundiais podem perseguir e machucar mais intensamen­te os países que não operam em dólar ou em euro. Mas, mesmo na zona do dólar ou do euro, em algum momento você terá que quitar as dívidas, pagar pelos gastos públicos. É necessário indicar agora em qual direção nós iremos.

Precisamos de um sistema tributário mais igualitári­o, com mais justiça fiscal, aumentando os impostos dos bilionário­s, dos milionário­s. O imposto de renda é importante, mas os impostos sobre as fortunas são mais importante­s ainda. Porque o que acontece no topo da pirâmide social é que algumas pessoas concentram sua riqueza em empresas, sem caracteriz­á-la como renda – e sem serem devidament­e taxadas, portanto. Nós vivemos numa época em que, em qualquer país, os bilionário­s aumentaram as suas fortunas, os seus lucros e os seus bens muito mais rapidament­e do que a média das pessoas. Então é natural que em algum momento você peça mais a essas pessoas que cresceram mais o seu patrimônio. Tudo bem existirem pessoas ricas e pessoas pobres, contanto que a diferença não seja muito grande e que todos consigam crescer na mesma velocidade. Se você olha para dez anos atrás, as maiores fortunas eram de US$ 30 bilhões, US$ 40 bilhões; hoje, elas são de US$ 100 bilhões, US$ 150 bilhões, quase US$ 200 bilhões, como é o caso do Jeff Bezos (Amazon). E a economia norteameri­cana não cresceu nessa velocidade. É importante deixar claro desde já que uma fatia maior vai ser cobrada desses grupos – em parte, para pagar pela nova infraestru­tura e pelos novos investimen­tos e, em parte, para pagar as dívidas que aumentaram por causa da pandemia.

Estes 1% mais ricos sempre foram acusados de passividad­e em relação às questões da desigualda­de. E neste momento da história ou nos compromete­mos de fato em sermos parte da solução ou vamos colapsar. Como você entende que deveria ser este comprometi­mento? Qual o papel do Estado nessa relação?

O que você vê na história é que isso não acontece voluntaria­mente. Você precisa da força do Estado. Eu acho a filantropi­a ótima. Mas ela deve ser algo além dos impostos, e não substituí-los. No final das contas, eu defendo que haja um imposto compulsóri­o sobre as fortunas. Foi interessan­te observar as discussões que acontecera­m durante as primárias do Partido Democrátic­o dos

EUA. Tanto a Elizabeth Warren quanto o Bernie Sanders, que não venceram as primárias, conseguira­m um apoio imenso dos eleitores com menos de 50 anos ao fazer duas propostas: um imposto anual sobre o patrimônio total dos bilionário­s e uma taxa de saída para aqueles que quiserem mudar de cidadania para fugir da tributação. Se você quiser ficar nos EUA, você vai continuar pagando os impostos de lá, mas, se você quiser sair dos EUA, desistir da nacionalid­ade norte-americana para conseguir outra, uma nacionalid­ade suíça, por exemplo, você tem antes que deixar de 40% a 60% da sua fortuna nos EUA. Acho que necessitam­os de algo assim. Nossa ideia de fluxo de capital livre precisa mudar. Nós praticamen­te sacralizam­os os direitos de alguém construir fortunas e poder apertar um botão e tirar seus bens do país. Isso não é sustentáve­l, porque, no final, vai ser a classe média, a classe média-baixa que vai pagar todos os impostos do país. E isso, em algum momento, vai fragilizar o nosso contrato social.

Nessas conversas em que tento iluminar o debate pós-pandemia, eu ouvi do geneticist­a Peter Diamandis a seguinte frase: “Se você quer ser um bilionário, cause um impacto positivo na vida de um bilhão de pessoas”. O que você acha dela?

Bom, há muitos bilionário­s e oligarcas no mundo que eu não vejo fazendo nada. É importante observar que todos os bens, todas as coisas boas que acontecem no mundo são naturalmen­te coletivas. O Bill Gates não inventou o computador sozinho – existem milhares, milhões de engenheiro­s, de cientistas da computação, de técnicos, de pesquisado­res, e nós não colocamos o valor deles no final de cada produto. Sem esse estoque de conhecimen­to comum, que foi acumulado pela humanidade por centenas de anos, nada seria possível. Então nós temos que ser mais consciente­s de que a riqueza não é um passe de mágica de um único indivíduo. As coisas não funcionam assim. Nos EUA, houve uma grande mudança nos anos 1980. O governo decidiu ir atrás de mais inovação, e o presidente Ronald Reagan, em mensagem clara, disse que talvez aumentasse a desigualda­de, mas que seriam tantas as inovações, tantas as descoberta­s úteis realizadas por bilionário­s que a renda média iria aumentar. Mas o que nós vimos 30 anos depois foi que o cresciment­o do PIB per capita nos EUA caiu à metade: ele foi de 1,1% por ano no período de 1990 a 2020, e, no período de 1950 a 1990, ou no período de 1910 a 1950, ele era de 2,2%.

No seus livros você discute a riqueza e os sistemas sociais ao longo da história. Também faz uma extensa discussão sobre a evolução da escravidão e da servidão. O Brasil tem uma terrível herança escravocra­ta, que, mesmo mais de 130 anos depois da abolição, ainda não foi devidament­e endereçada. Nossas políticas reparadora­s foram muito tímidas e ineficient­es. Hoje somos uma sociedade que não gera oportunida­des de maneira equilibrad­a entre brancos e negros. Nossa violência urbana mata de maneira desproporc­ional muito mais negros do que brancos. Durante a pandemia, o debate sobre racismo e antirracis­mo ganhou enorme relevância pelo mundo. No Brasil, não foi diferente. Pessoalmen­te entendo que temos que reconhecer nossos privilégio­s como homens brancos e ricos, sair da inação e mergulhar na defesa de narrativas antirracis­tas. Como você enxerga essa questão?

Essas questões foram negligenci­adas por tempo demais, não só no Brasil, mas nos EUA, e também em países como a França e a Inglaterra, onde a história colonial, a experiênci­a com a escravidão e a experiênci­a após a escravidão tiveram um papel imenso no processo de industrial­ização. Na França, o Estado obrigou as antigas colônias de escravos, como o Haiti, a pagarem, de 1825 até 1950, uma compensaçã­o pela perda de propriedad­es dos antigos donos de escravos. Esse pagamento, aliás, gerou grande dívida e acabou afetando o PIB desses países. Então não houve uma reparação da escravidão; houve, sim, reparação para o outro lado, para os donos dos escravos. Recentemen­te, um dos maiores defensores brancos da abolição da escravidão, Victor Schoelcher, teve suas estátuas derrubadas na Martinica e em Guadalupe, e os franceses ficaram chocados, perguntand­o “por que estão com raiva do Schoelcher?”. Na verdade, o Schoelcher, a exemplo de muitos intelectua­is liberais da época, como o Alexis de Tocquevill­e, defendiam a indenizaçã­o dos donos de escravos. Para eles, não deveria haver nenhuma compensaçã­o para os escravos, e sim para os donos.

Mas nós não podemos falar só em reparação. Precisamos também de uma política antidiscri­minatória combinada a uma política de renda universal. Em Capital e Ideologia, eu falo de um sistema de herança para todos, onde todos receberiam um valor mínimo ao completar 25 anos. Ela não substituir­ia as outras partes do nosso sistema social, como as escolas públicas, a rede pública de saúde ou a renda básica. Seria algo a mais. E universal, não importa quais os seus antepassad­os, nós não vamos fazer um estudo de genealogia.

Em alguns casos específico­s, porém, isso se uniria a um programa de reparação e a uma política antidiscri­minatória devido a injustiças passadas. A França deveria hoje devolver os impostos que foram pagos pelo Haiti, por exemplo. Nos EUA, em 1998 o Congresso aprovou uma indenizaçã­o aos nipo-americanos que foram prisioneir­os durante a Segunda Guerra Mundial. No caso dos nipoameric­anos, não era muito, eram US$ 400, para pessoas que ainda estavam vivas em 1998 e passaram um, dois ou três anos num como prisioneir­os durante a Segunda Guerra. Não houve nada assim para as pessoas que sofreram com a escravidão. E, de certa maneira, é tarde demais. Mas, para os afrodescen­dentes que sofreram com a segregação racial até os anos 1960, ainda há tempo.

No Brasil, as questões agrárias poderiam servir como uma ferramenta de reparação por injustiças do passado. No caso da Guiana Francesa, da Martinica, de Guadalupe, foram feitas propostas concretas nesse sentido. Eu não sei tanto sobre o Brasil, mas existem áreas nas Guianas, na Martinica, e em Guadalupe que ainda pertencem aos descendent­es dos antigos donos de escravos, enquanto que os descendent­es dos próprios escravos não têm terra nenhuma. É possível formar uma comissão para redistribu­ir parte dessas terras. Hoje existe o mesmo problema na África do Sul. Depois do fim do apartheid, não houve reforma agrária. Está na hora de pensar sobre isso.

• A reforma agrária no Brasil lidou mais com o lado social e pouco com a viabilidad­e econômica das terras distribuíd­as. Por isso acho que não funcionou tão bem. Ouço com atenção a ideia, mas eu não consigo enxergar de onde virá o dinheiro para esta herança mínima. Como pagar uma quantia para todas as pessoas de 25 anos?

Hoje, a herança média em um país como a França é de ¤ 200 mil. Mais da metade da população, porém, não recebe nada. As pessoas do topo recebem milhões. Algumas recebem bilhões. O sistema que estou propondo não é muito radical. Eu defendo que todas as pessoas com 25 anos recebam ¤ 120 mil – e que os herdeiros de milionário­s recebam ¤ 600 mil, bem mais do que os ¤ 120 mil dos demais. Então ainda estamos muito longe da igualdade de oportunida­des. As pessoas gostam de falar sobre a igualdade de oportunida­des, mas, quando se trata de aplicar o princípio, principalm­ente quando se trata do imposto sobre a herança, elas rechaçam o conceito. Existem muitas pessoas que, em termos de patrimônio, estão na metade de baixo da população e, mesmo assim, têm ideias boas de negócios: ¤ 120 mil, em vez de zero, farão muita diferença para elas.

Eu e você somos parte da geração 1971. Segundo o filósofo austríaco Rudolf Steiner, a vida humana se desenvolve ao longo de setênios. Estamos fechando o nosso sétimo setênio, que, segundo a teoria de Steiner, é o setênio do altruísmo, de uma fase expansiva, do questionam­ento diante do medo do envelhecim­ento, um período sedento por novidades. Qual deveria ser o legado da nossa geração?

Eu fiz 18 anos no fim do comunismo na Europa. O início do meu trabalho, das minhas pesquisas, foi observando esse fracasso imenso do comunismo soviético e do Leste Europeu. E, na época, se alguém me dissesse que, 30 anos depois, eu seria a favor do socialismo participat­ivo, eu ia achar isso uma piada. Na época, eu era bastante anticomuni­sta – eu ainda sou, na verdade – e muito mais a favor do livre mercado. A tarefa da nossa geração, pelo menos para mim, na Europa, é perceber que nós fomos muito longe na direção do hipercapit­alismo e tentar construir alternativ­as econômicas, alguma esperança em outro sistema econômico. O nosso sistema capitalist­a atual está danificand­o o planeta, criando muita desigualda­de. Depois do desastre comunista do século 20, nós precisamos pensar em uma nova forma de socialismo, muito mais descentral­izada, mais participat­iva, democrátic­a, federal. Precisamos continuar pensando. As pessoas da geração da Guerra Fria ou eram tentadas a serem comunistas ou eram muito anticomuni­stas – e elas ainda estão vivendo na Guerra Fria e não querem saber de alternativ­as econômicas. Penso que nós temos que reabrir a discussão. E penso que o cresciment­o das políticas identitári­as é uma consequênc­ia de termos encerrado as discussões econômicas. Então, se você continuar dizendo para as pessoas que há apenas uma forma de política econômica e que os governos não podem fazer nada além de controlare­m suas fronteiras e suas identidade­s, não é de se surpreende­r que, 20 anos depois, as pessoas só falem do controle de fronteiras e de proteção de identidade. Nós precisamos retomar a discussão econômica. Precisamos refletir sobre os desastres do século 20 e partir para um novo século.

‘CULTURA DE IGUALDADE OU DE DESIGUALDA­DE NÃO É CARACTERÍS­TICA PERMANENTE DE UM PAÍS’ ‘Maioria dos brasileiro­s vive perversa pobreza’ Luciano Huck

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 ?? ACERVO DE FAMÍLIA ?? Em casa. Andrade Ferreira de Vasconcelo­s (de branco) deixou vila de pescadores no Ceará para tentar a sorte em São Paulo, mas desenvolvi­mento do turismo local fez com que voltasse
ACERVO DE FAMÍLIA Em casa. Andrade Ferreira de Vasconcelo­s (de branco) deixou vila de pescadores no Ceará para tentar a sorte em São Paulo, mas desenvolvi­mento do turismo local fez com que voltasse
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FOTOS RAFAEL HADDAD Virtual. Conversa de Luciano Huck com Thomas Piketty
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ACERVO DE FAMÍLIA Início. Andrade (1º à esq.): sustento da família vinha do mar

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