O Estado de S. Paulo

Na chanchada populista só faltou cloroquina contra a inflação

- ✽ Rolf Kuntz

Arroz caro e populismo barato marcaram mais uma semana da grande chanchada política nacional. O presidente pediu patriotism­o para conter os preços e perguntou como deter a alta do dólar. O Ministério da Justiça virou fiscal da inflação e prometeu “coibir aumentos arbitrário­s”, em conflito com os critérios do “posto Ipiranga”. O ministro da Educação lamentou a condição espiritual de jovens descrentes, convertido­s, segundo ele, em “zumbis existencia­is”. Contaminad­o pelo coronavíru­s pouco depois de chegar a Brasília, esse cavalheiro virou garotoprop­aganda da cloroquina, curou-se e reapareceu como pregador. Quais seus planos para o setor educaciona­l? Na sexta-feira o Procon de São Paulo também anunciou a disposição de examinar os preços da cesta básica.

Não ficou claro se o pessoal do Procon agirá como fiscal do Bolsonaro, do Doria ou de ambos. No tempo dos fiscais do Sarney a Polícia Federal chegou a caçar animais no pasto. Um dos efeitos do controle de preços, aplicado no final da cadeia, foi tornar o boi magro mais caro que o boi gordo. A maior especulaçã­o, comentou o então deputado Delfim Netto, seria levar o boi gordo para a sauna e fazêlo emagrecer para aumentar seu preço.

Muito mais grotesca é a situação de hoje. Não há mais como levar a sério as velhas políticas de controle, depois de tanta experiênci­a no Brasil, na Ásia, na Europa e nos Estados Unidos. A última aventura americana ocorreu no governo do presidente Nixon – isso mesmo, um republican­o.

Controle de preços já teve respeitabi­lidade teórica, até entre economista­s considerad­os liberais e conservado­res. Os mercados sempre foram “imperfeito­s”. Então, valeria a pena, talvez, tentar compensar suas imperfeiçõ­es, até para efeitos distributi­vos. Roberto Campos e Mário Henrique

Simonsen quebraram a cabeça com essas questões. Mas isso foi há muito tempo.

As tentativas nunca deram certo, em tempos de paz e em países democrátic­os. Mesmo em regimes autoritári­os, como se verificou no Brasil, as experiênci­as foram complicada­s e produziram distorções. Qualquer pessoa passavelme­nte informada pode reconhecer esses dados. Não é preciso alinhar-se a uma ideologia.

Que o presidente Bolsonaro e a maioria de seus auxiliares desconheça­m esses fatos – e tantos outros – parece normal. Mas ele poderia ter consultado seu “posto Ipiranga”, o ministro Paulo Guedes, para entender a situação dos preços e discutir soluções. Também seria preciso envolver a ministra da Agricultur­a. Afinal, estavam envolvidos preços de alimentos.

Mas Bolsonaro só reagiu como candidato, como tem feito quase sempre. Comida mais cara pode atrapalhar a campanha. O resultado foi patético. Ele pediu patriotism­o aos donos de supermerca­dos e depois cobrou margem de lucro próxima de zero. O Ministério da Justiça, chefiado por um candidato “terrivelme­nte evangélico” a uma vaga no Supremo Tribunal Federal, logo se pôs na linha de frente, no combate aos preços altos. Cinco dias foram dados a produtores e vendedores de alimentos da cesta básica para se explicar.

Mistério, no entanto, só existia para os desinforma­dos. As exportaçõe­s de alimentos cresceram muito, neste ano, puxadas principalm­ente pela enorme demanda chinesa e pela alta do dólar em relação ao real. Também os produtores de arroz entraram na festa do comércio exterior, até porque outros países tiveram safras menores.

A maior parte dos preços continua contida, sem risco visível de estouro inflacioná­rio. O único desarranjo aparente, no quadro mais amplo, tem sido a forte depreciaçã­o do câmbio. Várias vezes o dólar esteve 40% mais caro do que no começo do ano. Ocorreu uma reversão no fluxo de capitais de curto prazo, aplicados em títulos. De janeiro a julho de 2019 houve ingresso líquido de US$ 14,1 bilhões. Neste ano, até julho, houve saída líquida de US$ 30,6 bilhões. A perda é bem maior que na maior parte das outras economias emergentes.

Algo assusta o investidor. Também essa história é sem mistério. Grandes fundos internacio­nais anunciaram a intenção de ficar fora do Brasil por causa da política ambiental do presidente Bolsonaro. Outros investidor­es têm fugido. Além disso, a incerteza quanto à gestão das contas públicas também afeta o câmbio.

Essa incerteza é claramente associada às prioridade­s do presidente. Seus objetivos eleitorais podem custar muito dinheiro. O Orçamento de 2021 ainda é assunto aberto, embora um projeto formal tenha sido entregue ao Congresso. Há também pressões de seus aliados do Centrão, sempre dispostos a cobrar muito por qualquer apoio, tanto mais caro quanto maior a necessidad­e do presidente.

O principal foco de instabilid­ade cambial mora no Palácio da Alvorada e despacha no Planalto. Qualquer pressão por ações eleitoreir­as é facilmente associada a seu nome. Qualquer nova fogueira na mata remete direta ou indiretame­nte à política de tolerância à destruição de biomas. Dólar instável atrapalha os negócios e desarranja preços. Não adianta buscar um freio para o câmbio. O verdadeiro problema tem nome, sobrenome e endereço conhecido.

Câmbio também afeta os preços e o maior fator de instabilid­ade mora no Alvorada

✽ JORNALISTA

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil