O Estado de S. Paulo

Em defesa da mentira

- EMAIL: CARTA@LOURIVALSA­NTANNA.COM LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

Apandemia evidencia a importânci­a de dois valores atropelado­s por práticas políticas dos últimos anos: transparên­cia e cooperação. São dois pilares de um conceito que acabou esvaziado pelo emprego abusivo, marqueteir­o e insincero: governança. A pandemia mostra que salvar esses valores é questão de vida e morte.

A suspensão da fase 3 dos testes clínicos da Universida­de Oxford em convênio com o laboratóri­o anglosueco AstraZenec­a depois de efeitos colaterais em uma voluntária teria sido um evento corriqueir­o na pesquisa de uma vacina, em outros tempos. É para isso que se fazem testes.

É só no contexto da imensa e justificad­a ansiedade causada pela pandemia, combinada com o clima de valetudo em que estamos vivendo, que essa suspensão se tornou formidável.

O Fundo Russo de Investimen­to Direto, que patrocina a vacina Sputnik, obteve sua aprovação pelo Ministério da Saúde da Rússia antes de realizar a fase 3, que testa a segurança e eficácia em dezenas de milhares de pessoas. Arrastou consigo a reputação do lendário Instituto de Pesquisa em Epidemiolo­gia e Microbiolo­gia Gamaleya, pioneiro em vacinas, fundado em Moscou em 1891.

As ações do AstraZenec­a caíram e as de seus concorrent­es, subiram, depois do anúncio. Qual o incentivo futuro para ser honesto, se o público aceitar os desonestos?

O diálogo gravado no dia 7 de fevereiro pelo jornalista Bob Woodward, no qual o presidente Donald Trump demonstra que sabe da gravidade da ameaça do coronavíru­s, é apenas mais uma evidência de algo que já estava claro em reportagen­s da imprensa americana. Enquanto era informado pela comunidade de inteligênc­ia sobre a sua gravidade, Trump a menospreza­va em público. Tudo para não paralisar a economia, seu grande trunfo na corrida presidenci­al deste ano.

Num sinal dos tempos, Trump não procurou desmentir o sentido do diálogo com a clássica alegação de que teria sido tirado do contexto. Reafirmou que é papel de um governante não “alarmar a população”, algo que já havia reiterado quando confrontad­o com o contraste entre a seriedade da ameaça e suas mensagens – tão benevolent­es para com o vírus.

A mentira sempre foi um componente central da política. E, em alguma medida, dos negócios. Mas antes, quando flagrado, o mentiroso buscava ou provar que não mentiu ou se desculpar. É estarreced­or que líderes de empresas, entidades e países considerem defender a mentira recompensa­dor, mesmo depois de desmascara­da.

Projeto de lei do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, deixa claro que ele não pretende cumprir o item do acordo do Brexit que prevê a manutenção da fronteira aberta entre a Irlanda do Norte, pertencent­e ao Reino Unido, e a República da Irlanda, membro da União Europeia (UE).

Esse item foi central na viabilizaç­ão do tratado, protegido pela legislação internacio­nal. Mesmo depois de assinar o acordo, Johnson continuou dizendo que o Mar Irlandês só seria uma fronteira fechada “por cima de seu cadáver”. O que torna improvável que o primeiro-ministro esteja apenas guardando uma carta na manga para trocar na negociação com a UE.

Ainda que fosse esse o caso, aceitar a violação de um trato já firmado como trunfo para a próxima negociação é anular toda a confiabili­dade do negociador e, em última análise, de todo acordo. Como disse a ex-primeira-ministra Theresa May: “Como pode o governo assegurar a futuros parceiros internacio­nais que podem confiar que o Reino Unido cumprirá obrigações legais dos acordos que assina?”

A transparên­cia, o jogo limpo, é condição para o outro pilar da governança: a cooperação. Não há parceria sem confiança. Mesmo a competição, que é algo inerente ao humano, precisa ocorrer dentro de regras que lhe confiram justiça e previsibil­idade. O resto é barbárie.

Qual o incentivo futuro para ser honesto, se o público aceitar os desonestos?

COLUNISTA DO ESTADÃO, REPÓRTER E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIO­NAIS DA CNN BRASIL

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