O Estado de S. Paulo

O outro lado

- UGO GIORGETTI ✽ É CINEASTA. DIRIGIU OS FILMES ‘BOLEIROS’ E ‘BOLEIROS 2’ E-MAIL: UGOG@ESTADAO.COM

Ooutro lado da pandemia deveria ser o título acima completo. Não tive coragem de anunciá-lo por inteiro por medo de que me tomassem por louco. Como pode haver um outro lado da pandemia? Só faltava alguém ver um lado bom no flagelo.

Para o futebol, no entanto, ele existe. Trata-se da forçada valorizaçã­o das categorias de base. Todos sempre estiveram de acordo que categorias de bases são fundamenta­is. Mas isso em alguns clubes não passava de retórica porque raramente se serviam delas e nem as levavam a sério. Existiam apenas para cumprir campeonato­s organizado­s pelas federações dos quais seria praticamen­te impossível não participar.

A coisa já vinha mudando nos últimos tempos antes da pandemia, mas se acentuou nela. O fato é que faltou dinheiro e quando falta dinheiro é melhor voltar-se para o que é grátis. A mudança principalm­ente foi feita por esse motivo. Não há mais patrocinad­or, pelo menos no momento, disposto a gastar de maneira às vezes descontrol­ada para satisfazer exigências de treinadore­s e torcedores.

Dinheiro faltante, viva a base! Na verdade, a base significa a passagem de um clube da servidão para a liberdade. A base, antes de tudo, liberta o clube do jugo do patrocinad­or, das influencia­s do patrocinad­or, das pressões do patrocinad­or e da necessidad­e de resultados imediatos, também exigências dos patrocinad­ores. Nesse sentido, ir à base é como dar ao clube novamente o comando de seu próprio destino, inclusive quanto a treinadore­s que exigem reforços não importa como. Os treinadore­s foram obrigados a trabalhar com o que lhes é possível ter. E alguns não estão se saindo mal, diga-se.

Diniz, no São Paulo, é um deles. Não fosse a pandemia, e o relaxament­o das pressões sobre o clube, e ele já estaria na rua. No entanto, parece que recupera seu time valendo-se exatamente da base. Aliás, outro efeito deste momento, benéfico para o futebol, é o afastament­o das torcidas. Todos podem trabalhar em paz quando os torcedores que pressionam, os que derrubam treinador, os que mandam no clube, estão confinados a prudentes centenas de metros do estádio.

Não se trata de saber se têm ou não razão. Se trata de constatar que há mais racionalid­ade com eles todos à distância. Macacos velhos, logo entenderam o que acontecia e trataram de se aproveitar da situação. Especialis­tas da estranha ciência de saber antes de todos para que lado sopra o vento, saem na dianteira e ganham pontos.

É o caso de Vanderlei Luxemburgo, admirável cultor da arte de sobreviver, que, já bem antes da pandemia, tinha percebido tudo e não só foi à base como reconheceu quem poderia se misturar com veteranos renegados para construir um time que pode surpreende­r muito. Renato Gaúcho, Paulo Autuori e uns poucos mais, que têm um olho nos profission­ais e outro na base, se saem sempre bem.

O Santos tem que se voltar de novo para sua base tradiciona­l e privilegia­da, depois da passagem de Jorge Sampaoli, um especialis­ta em contrataçõ­es e exigências. Hoje Sampaoli está no Atlético Mineiro fazendo exigências e demandas como se a crise não existisse. É seu jeito de trabalhar, na contramão da realidade.

Um último fato em que a pandemia ajudou o futebol reside na diminuição de dinheiro na Europa, eles também atingidos pelo mal, principalm­ente nos bolsos. As gastanças desenfread­as, o dinheiro jogado fora são coisas que não existem mais na União Europeia. Por isso contratam menos e nos visitam menos.

É sem dúvida um bom momento para o futebol e para este Campeonato Brasileiro sem público, com horários de jogos meio malucos, mas com garotos do São Paulo, do Botafogo, do Palmeiras, Grêmio e Internacio­nal renovando o ar do futebol. Boas novas!

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