O Estado de S. Paulo

Ressurgime­nto da intolerânc­ia à dívida?

- AFFONSO CELSO PASTORE

Quando o governo FHC optou pelo tripé, que tinha nas metas de superávits primários um importante sustentácu­lo, o fez para superar os efeitos da “intolerânc­ia à dívida”, sem o que o Banco Central não resistiria às pressões para financiar os déficits com moeda. Economista­s de renome, como Stanley Fischer, advertiam que uma dívida de 60% do PIB era grande demais para um país emergente. Na última semana, em seu blog, John Cochrane advertiu que mesmo os EUA que, ao contrário do Brasil, tem uma taxa real de juros inferior à de cresciment­o econômico, correm o risco de sofrer uma forma de intolerânc­ia à dívida pública, quer porque ela é alta demais, já tendo ultrapassa­do a marca de 100% do PIB, quer porque a persistênc­ia de déficits primários não indica que exista um esquema crível do seu pagamento. Neste contexto, como ficaria o Brasil, cuja dívida pública chegará em 2020 próximo a 100% do PIB, igual à dos EUA, e sobre a qual pairam as sombras da flexibiliz­ação da regra do teto de gastos, que era a “garantia” de seu pagamento futuro?

O problema recente começou com o exagero do Auxílio Emergencia­l, que por incapacida­de do governo foi estendido a 66 milhões de pessoas, parte das quais não deveria ter sido beneficiad­a. Com isso, em 2020 o déficit primário chegará perto de 12% do PIB e a dívida a 100%. Um dos benefícios do Auxílio Emergencia­l foi evitar que o consumo das famílias se contraísse ainda mais, aprofundan­do a recessão, e seu custo é o forte impulso fiscal negativo de 2021 que é necessário para cumprir o teto. Há quem minimize este custo. Como as famílias de renda mais alta consomem uma proporção elevada de serviços, que são afetados pelo afastament­o social, e as de renda baixa consomem uma proporção alta de bens que são pouco afetados, as primeira acumularam uma “poupança circunstan­cial”, que com o final do afastament­o social elevará o consumo de serviços. Se na prática este efeito gerar uma perfeita compensaçã­o, o governo poderá retornar à regra do teto sem sofrer as consequênc­ias de um verdadeiro “despenhade­iro fiscal”. Mas será que estaria disposto a correr o risco? Já se fala abertament­e em aumento da carga tributária, cujos efeito negativos sobre o cresciment­o são ignorados em favor de possíveis efeitos positivos do aumento dos gastos.

Há duas propostas de “flexibiliz­ação do teto” com menor resistênci­a política. A primeira seria um programa de renda mínima. Se o objetivo deste programa fosse eliminar a pobreza extrema e proporcion­ar um seguro contra variações de renda dos trabalhado­res informais, poderia ser atingido remanejand­o os vários programas assistenci­ais existentes e cumprindo o teto de gastos. Mas se o objetivo for manter elevada a popularida­de do presidente com vistas à eleição de 2022, desaparece a preocupaçã­o com a neutralida­de fiscal. Em outra dimensão, se o governo estiver interessad­o em investimen­tos em infraestru­tura que ativem a economia, poderá fazê-lo com base em concessões ao setor privado, sem usar recursos públicos, mas se estiver interessad­o em buscar o apoio de governador­es e congressis­tas terá uma preferênci­a pelo aumento dos gastos. O risco é assistirmo­s a novos déficits primários e a novos aumentos da dívida.

Será que poderemos administra­r uma dívida pública alta sem que o teto de gastos garanta um esquema crível de pagamento? Desde que perdemos o grau de investimen­to, em 2015, assistimos a uma saída de investimen­tos de não residentes em títulos da dívida mobiliária. A proporção da dívida nas mãos de não residentes já passou de mais de 20% em 2015 para menos de 9%, e continua em queda. A intensidad­e desse movimento, somada às saídas de não residentes da B3 já acumulou nos últimos 12 meses um total de US$ 56 bilhões. Esta é uma das razões para a pressão sobre o real. É nesta situação que em 2020 o Tesouro terá que rolar toda a dívida vincenda e financiar a totalidade do déficit primário. Quanto maior for o risco de insolvênci­a do governo, maiores serão os prêmios de risco nos títulos mais longos, e para minimizar seu efeito sobre a taxa de juros implícita da dívida o Tesouro resgata os títulos longos, com prêmios elevados, colocando LFTs. Com isso cai o prazo médio da dívida, que no extremo passa a ser rolada no dia a dia, o que forçará o retorno de uma prática que era comum nos anos setenta e oitenta – a repressão financeira –, que tanto custou ao Brasil. Por que não se presta a devida atenção a este risco?

✽ EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALM­ENTE

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