O Estado de S. Paulo

‘A gente opera no limite do caos – e por isso temos grandes ideias’

Referência, empresa diz que ‘jeito brasileiro’ de se relacionar foi incorporad­o à cultura criada nos Estados Unidos

- / F.S.

Imagine uma empresa onde ninguém sabe a hora que você entra, não confere despesas de viagem nem dias de férias. Além disso, você é encorajado a fazer investir o dinheiro da empresa – sem limite ou autorizaçã­o do chefe. Parece utópico? Pois esses são elementos do modelo que a Netflix vem adotando há 20 anos – e que viraram tema de livro.

Em entrevista ao Estadão, Reed Hastings, fundador e co-presidente da companhia, explicou os princípios da empresa – que, segundo Hastings, “opera no limite do caos”. Ele também revela que algumas mudanças foram incorporad­as com o tempo – entre elas, um certo tempero do jeito brasileiro de se relacionar.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

• Antes de fundar a Netflix, o sr. teve vários projetos de empresas. Como isso teve origem?

Quando estava na universida­de, comecei a me interessar em construir coisas – e a maioria delas não funcionou. Um exemplo: fiquei entusiasma­do com a ideia de um mouse de computador que você mexeria com o pé. E o que acontece é que, após 45 minutos, você vai ter cãibra na perna. E o chão é muito sujo. Tive de deixar para trás. Muitas ideias que eu tinha não eram boas – mas não é algo que você entende no começo. Mas sempre tive essa disposição de tentar ideias e ver se funcionava­m.

O sr. cita no livro fracassos do início da Netflix – como demitir 30% dos funcionári­os, quando o negócio ainda era pequeno. Aprende-se com os fracassos?

Sim, o livro é sobre sucessos e fracassos – e todos os principais sucessos vieram de aprendizad­os de como lidar com o time. É onde realmente começou a Netflix. Então, tentamos coisas que não foram bem – e assim aprendemos com algumas situações desafiador­as, como aquele corte de funcionári­os.

• A Netflix aplica o Keeper’s Test, que é um teste contínuo de avaliação que permite o desligamen­to do funcionári­o a qualquer hora. Ele serve a outras empresas?

Dizer que é um mapa para as empresas é muito forte. Acho que cada empresa tem de entender os elementos que fazem ou não sentido. O que estamos tentando fazer é uma descrição honesta do que fazemos, porque nosso projeto é bem diferente. Mas cada um pode decidir o quanto pode aplicar à sua realidade.

• A Netflix separa funcionári­os “excelentes” dos “adequados”, que devem ser demitidos. Por que a empresa dá o que chama de “bônus generoso” a quem sai?

Porque eles tentaram com afinco, deram o melhor de si, e nós queremos que eles tenham a chance de encontrar uma nova função em uma nova empresa. Mas para a gente está muito clara a diferença entre time e família – foi assim desde o começo. Uma família é um grupo com o qual você pode sempre contar para o que der e vier. Se seu irmão é disfuncion­al, vai continuar na família. Mas nosso conceito é de equipe. E um time precisa de performanc­e, excelência e garantir que cada um tenha sua chance (de mostrar talento).

• Em uma cultura de avaliação constante, ninguém está a salvo? Vale para todos?

Sim. Eu inclusive de vez em quando pergunto para meus chefes (do conselho de administra­ção): eu devo ser substituíd­o? E vai chegar um momento em que a resposta vai ser sim. E tudo bem, porque a empresa tem de priorizar produtivid­ade, honestidad­e e aprendizad­o.

O Netflix não confere despesas ou dias de férias, mas admite que isso acaba saindo mais caro. Por que a empresa, então, tomou esse caminho?

Em muitas empresas, o objetivo é que tudo seja limpo, eficientes, estéril. E isso pode funcionar para eles. Mas nós queremos ser férteis, bagunçados – a gente opera no limite do caos. E por esse motivo que a gente se permite ter grandes ideias e abraçar a criação de novos conceitos de negócio.

• A Netflix é uma empresa americana que se torna cada vez mais global. Novas culturas estão influencia­ndo a companhia?

Definitiva­mente, esse processo está nos tornando melhores. Americanos não gostam de perder tempo ou bater papo – parece falso e perda de tempo. Os brasileiro­s, porém, gostam de conversar na hora do almoço, de falar de outras coisas e depois voltar ao trabalho. Entendemos que, nesse aspecto, o jeito brasileiro é melhor. No longo prazo, é mais eficaz, porque você forma relações com as pessoas. Ao redor do mundo, mudamos para reuniões mais abertas, em que as pessoas podem conversar mais, falar sobre a vida em geral. Isso nos tornou melhores.

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KWAKU ALSTON/NETFLIX

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