O Estado de S. Paulo

Camiseta com causa: negócio nunca sai de moda

Che Guevara e Stones dão lugar a campanhas que vão de Marielle a negritude e feminismo; cultura geek ainda é hit

- Fernando Victorino Nathalia Molina

Imortaliza­da pela lente de Alberto Korda, em 1960, a clássica foto de Che Guevara é uma das mais reproduzid­as mundo afora. Ícone tão presente em camisetas quanto a língua e a boca desenhadas por John Pasche para os Rolling Stones. As imagens traduzem o comportame­nto de quem as veste e geram dividendos para quem as vende, ao lado de novas causas.

De feminismo a lances de futebol, de negritude a super heróis: tem sempre uma camiseta para estampar e alguém para levá-la como bandeira. “A Chico Rei tem grandes parceiros, como Milton Nascimento, Lenine. Quando estou conectado com isso, sei do que quero falar por meio das camisetas. A gente espera que a Chico Rei seja um caminho para a expressão dos clientes”, diz Bruno Imbrizi, criador da marca.

Nascida em 2008, a Chico Rei une congado com pop art. “Como estilo, eu buscava Andy Warhol e mesclava com o que encontrava da cultura mineira.” Atualmente, a empresa contabiliz­a 40 artistas convidados, que já desenvolve­ram mais de 1,2 mil estampas. “O primeiro ano foi só venda para loja física, e não recebi de nenhuma.” A inadimplên­cia empurrou a marca para a internet. “De lá para cá, a Chico Rei saiu do meu quarto para virar uma empresa com mais de 100 funcionári­os.” A empresa, diz ele, faturou R$ 11,5 milhões em 2019 e espera R$ 22 milhões para este ano. Só em agosto, vendeu 58 mil peças.

A empresa nasceu sob o signo da liberdade conquistad­a pelo príncipe do Congo trazido ao Brasil como escravo, no século 18. A lenda de Chico Rei e sua luta de alforria inspiraram as primeiras estampas. Serviram de base ainda para o selo Camisetas Mudam o Mundo, iniciativa que levou parte da unidade fabril para uma penitenciá­ria em Juiz de Fora. “Eles são assalariad­os e, a cada três dias de trabalho, ganham um de liberdade”, diz o diretor da confecção.

Na marca paulistana El Cabriton, “Defenda o SUS” é uma das estampas mais vendidas. Faz parte da coleção Cesta Básica, lançada em abril, na qual 10% das vendas vão para o projeto Acesso às Famílias, na zona leste de São Paulo. “Nossa empresa tem a sorte de trabalhar com artistas tão talentosos. Por sua sensibilid­ade aflorada, conseguimo­s estampas que comunicam bem o sentimento das pessoas nessa situação doida por que estamos passando”, diz Érica Abud, à frente da marca com o marido, Leandro Domenico. Outro sucesso de público leva a frase feminista “sabe oq cairia bem hj? o patriarcad­o”.

O casal sempre viu camisetas como expressão. “Você tem de gostar muito daquilo que está levando no peito. A gente criou a El Cabriton há 14 anos porque não achava nada que tivesse a

cara da gente”, conta Érica. Aberta três anos depois, a loja na Rua Augusta trocou muito de roupa — a fachada já recebeu cerca de 150 grafites de convidados. Nos cabides, estampas também falam de filmes, têm inspiração gay pride ou ironia.

Nicho. O segmento de camisetas no Brasil de fato nunca saiu de moda. E virou um bom negócio com marcas autorais e fabricante­s licenciado­s, trabalhand­o de modo artesanal ou em escala industrial. “O processo ainda é de serigrafia, mas é feita por uma máquina alemã que roda 700 camisetas por hora, em até 24 cores, o que é uma coisa bizarra para o mercado”, afirma Felipe Rossetti, CEO da Piticas.

Ele e o irmão, Vinicius, passaram a adolescênc­ia nos Estados Unidos, onde o pai foi trabalhar. Da cultura americana, trouxeram a paixão por “comics” e as graduações em empreended­orismo e finanças. A dupla viu o universo pop como um nicho no País, mas teve dificuldad­e

em negociar com as licenciado­ras, devido à pirataria no Brasil. A história mudou no acordo com a Nickelodeo­n, em 2012. “Até então a gente vivia de camisetas autorais”, diz o CEO.

Referência geek, a Piticas virou um dos players da Comic Con, a maior feira brasileira de cultura pop, realizada desde 2014. No ano seguinte, fechou contrato com a Disney. Isso exigiu estruturaç­ão da marca, que atingiu R$ 210 milhões em faturament­o de sell-out em 2019. Hoje, as duas fábricas em Guarulhos (SP) produzem 22 mil camisetas por dia.

Na pandemia, o fechamento de 95% dos pontos de venda (460 lojas) levou o foco para a internet. “Nosso e-commerce explodiu, está fazendo dez vezes o que fazia.”

Desde o acordo com a Disney, o Hulk tem emprestado sua força ao negócio dos irmãos. Lançada em 2015, uma estampa do personagem vendeu até hoje 200 mil unidades. “A gente é marcado no Instagram com as pessoas fazendo a pose do Hulk. Elas se sentem representa­das.”

Representa­tividade é a essência da carioca Negrei, criada em 2018 para a Feira Preta. “Todos os produtos são pensados para os negros. O protagonis­mo tem a pele preta, do desenvolvi­mento à tomada de decisão”, afirma Rafael Lima, conhecido como Don. Frases tipicament­e racistas têm a lógica invertida e estampada sobre malha branca ou preta. Microempre­endedor individual, ele vende em torno de 100 camisetas por mês e tem faturament­o anual médio de R$ 80 mil.

A estampa que mais sai é “Não sou racista, tenho até 1 camisa branca”. “Tem uma pegada sarcástica. Você pode ter relacionam­ento com um negro e ainda assim, quando é pego tendo atitude racista, usa a pessoa como álibi.” A série com a expressão #ÉCoisadePr­eto usa verbos para falar de trabalho, como “advogar” e “lecionar”.

Formado em design de produto, Don encara a marca Negrei como um espaço de produção de conteúdo. “Por mais que alguns textos do Instagram da Negrei sejam densos, é um feed harmônico. Não queremos que o perfil seja um encarte, em que você vê só camisa.”

(A CAMISETA) TEM UMA PEGADA SARCÁSTICA. VOCÊ PODE TER RELACIONAM­ENTO COM UM NEGRO E, QUANDO É PEGO TENDO ATITUDE RACISTA, USA ESSA PESSOA COMO ÁLIBI

Rafael Lima MARCA NEGREI

 ?? ALEX SILVA/ESTADÃO ?? 22 mil camisetas por dia. Os irmãos Vinicius (E) e Felipe Rossetti, na fábrica da Piticas
ALEX SILVA/ESTADÃO 22 mil camisetas por dia. Os irmãos Vinicius (E) e Felipe Rossetti, na fábrica da Piticas

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