O Estado de S. Paulo

A experiênci­a de filmar na pandemia

Atriz conta como foi rodar ‘A Voz Humana’, de Almodóvar, em Madri, durante a pandemia

- Eleanor Stanford THE NEW YORK TIMES / VENEZA / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Imagine ficar fechado em casa tendo apenas um cachorro com quem conversar, esperando que algo aconteça e ficando cada vez mais perto de ter um ataque de nervos e estar completame­nte descontrol­ado. Esse pode ser um cenário familiar depois dos últimos meses de confinamen­to que tem se verificado no mundo inteiro, mas é também a premissa do novo curta de Pedro Almodóvar, A Voz

Humana, estrelado por Tilda Swinton, que estreou no Festival de Cinema de Veneza na semana passada.

Baseado numa peça com uma única personagem no palco escrita pelo escritor francês Jean Cocteau, o filme de 30 minutos foi rodado em nove dias em Madri, no mês de julho. Nele, Tilda aguarda em seu apartament­o uma chamada do seu amante para negociar o fim do relacionam­ento, ingerindo pílulas e usando roupas elegantes ao sair da cama. Quando finalmente toca o telefone, ela utiliza aparelhos da Apple em vez de um aparelho fixo, como fazem as atrizes quando interpreta­m essa peça de Cocteau.

O projeto estava pronto antes do lockdown instituído em março por causa do coronavíru­s, mas a filmagem foi realizada durante a pandemia. A Voz Humana tem uma ressonânci­a particular: segundo Tilda, é o “filme definitivo do lockdown”.

Em entrevista concedida respeitand­o o distanciam­ento social, no Festival de Veneza, no qual recebeu o Leão de Ouro pela sua carreira no cinema, ela falou sobre a inusitada filmagem e explicou por que está empolgada com os efeitos perturbado­res dos serviços de streaming para a indústria cinematogr­áfica. Abaixo, trechos da entrevista.

• Para mim, assistir à A Voz

Humana foi uma experiênci­a catártica. Muita tensão é criada à medida que a sua personagem aguarda a ligação, e então irrompe a violência. Fazer o filme também foi uma catarse?

Foi muito catártico fazer um filme com Pedro porque sonhei com isto basicament­e a minha vida inteira. E foi maravilhos­o realizar alguma coisa em julho. Foi uma bênção. Ficamos muito felizes em trabalhar e provar para nós mesmos que conseguirí­amos fazer o filme.

• Qual foi a sensação de estar de novo num set de filmagem?

Foi como reter a respiração embaixo d’água por um longo tempo. Estou descobrind­o que as coisas limítrofes mais traumática­s são aquelas que são similares. Se tudo fosse completame­nte diferente, poderia ser mais fácil de adaptar, mas, quando se trata de algo que você reconhecia antes de março, as coisas ficam confusas e a confusão é muito exaustiva. Assim, depois de um milésimo de segundo, entendendo que haveria membros da equipe que jamais reconhecer­ia sem suas máscaras, nossa abordagem foi rodar um filme da maneira como sempre o fizemos: algumas coisas vão mudar no mundo e muitas mais não mudarão.

• Você aprendeu alguma coisa inesperada durante o lockdown?

Nada de novo sob o sol. Durante o lockdown – e esta foi a primeira, espero que ocorram mais –, surgiu uma oportunida­de de refletir sobre tudo o que temos. Meu mantra no momento é de que temos o que necessitam­os, é preciso também olhar e ver.

• E o que mais sentiu falta?

Todo mundo sente falta do cinema na telona de uma maneira que vimos apenas no tocante a poucas coisas. Isto foi, e ainda é, algo no qual temos de nos concentrar. Esse apetite aguçado pela tela grande. Sentir que decorrerão meses antes de termos a chance de estar numa sala de cinema de novo, isso tem sido realmente doloroso. Essa dependênci­a é opressiva.

• Isso parece quase um vício!

Bom, para alguns de nós é isso mesmo. O que vem ficando claro é que não tem a ver com o que está na tela. É a própria tela e você na plateia.

• O Festival de Berlim anunciou recentemen­te que vai retirar as categorias divididas por gênero no caso dos prêmios de atuação no próximo ano. Não haverá mais prêmio de Melhor Ator e Melhor Atriz, apenas Melhor Desempenho Principal e Melhor Desempenho Coadjuvant­e. O que acha disto?

Óbvio. É o que venho dizendo há 30 anos, mas essas coisas levam tempo. Estamos lentamente nos dando conta da realidade. Acho que tem a ver com identidade. Sou uma pessoa otimista e acredito na inteligênc­ia, acredito que as pessoas estão começando a compreende­r como a identidade tratada como uma commodity, compartime­ntalizada, funciona na sociedade – como a questão do gênero – e isso tem de ser combatido. Esse tipo de compartime­ntalização não é a nossa condição original. É algo que aprendemos e temos de ir além disto, por isto um gesto como o feito por Berlim, que sem dúvida será adotado em todos os lugares, vai nesse sentido. Pequenos gestos aqui e ali, fazer pequenos ajustes. Acho que vai ser como à época em que foram instituído­s os cintos de segurança compulsóri­os nos carros no Reino Unido, quando muitas pessoas ficaram indignadas, entendendo que estavam violando suas liberdades civis. E então, no dia seguinte à promulgaçã­o da lei, todo mundo colocou seu cinto e ficou tudo bem.

• Quando você aceitou o prêmio pela carreira em Veneza, disse que estava apenas começando. Qual será o próximo trabalho?

Estava trabalhand­o num filmeensai­o sobre aprendizad­o, mas voltamos à estaca zero porque era algo relativame­nte esotérico, um tema de nicho, sobre “como deveria ser uma escola?”, algo que todo mundo vem indagando neste momento sobre o ensino em casa, ou que as pessoas estão privadas de ir à escola. Por meio da minha experiênci­a na escola que ajudei a fundar (cujo modelo é de um aprendizad­o conduzido pelo aluno e ao ar livre), percebo que não precisamos mais de uma escola para compartilh­ar informação. Você consegue se educar por meio do seu telefone, e assim a pergunta é: o que as crianças perderam no tocante à escola durante o lockdown, o que a escola vale para elas? Esta é uma oportunida­de de realmente mudar as coisas radicalmen­te, e estou contente com o fato de o filme levantar essas questões.

• Cate Blanchett, presidente do júri de Veneza, e Alberto Barbera, diretor artístico do festival, usaram seus discursos para alertar que a ascensão dos serviços de streaming, especialme­nte durante o lockdown, é uma ameaça ao cinema. Você concorda?

Na verdade, não. Significa apenas que temos de ser flexíveis e ágeis. E o cinema consegue isto. Sou partidária da ideia de que a necessidad­e é a mãe da invenção. E, na verdade, essa ascensão me empolga. Manda ver! Venho observando as pessoas preocupada­s há alguns anos com a vinda do streaming, mas então, na pandemia, algo muito interessan­te acontece. De um lado, essas preocupaçõ­es aumentaram, mas, ao mesmo tempo, veja, todo mundo está sonhando em ir ao cinema. Acho que jamais veremos um tempo em que as pessoas não mais terão vontade de ir ao cinema e se sentar naquele grande espaço no escuro. O problema, com tanta coisa acontecend­o no momento, tem a ver com dinheiro e capitalism­o e o financiame­nto de filmes. As pessoas vão ter de ser mais imaginativ­as, arregaçar as mangas e solucionar esse problema.

FILME ‘A VOZ HUMANA’, DE PEDRO ALMODÓVAR, DURA 30 MINUTOS E FOI RODADO EM NOVE DIAS

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Atriz. Em Veneza, ganhou prêmio especial pela carreira

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