O Estado de S. Paulo

Isto ou aquilo

- Alice Ferraz* MODA@ESTADAO.COM

Sou do tipo que gosta de refletir e que busca profundida­de em conversas sobre assuntos triviais. Por isso, adoro pessoas interessad­as, que têm o desejo genuíno de escutar. Conversar sobre a vida e buscar consciênci­a na interação, no meu caso, é parte integrante de quem sou. Gente assim causa certo desconfort­o, porque perguntar, muitas vezes, pode parecer ofensa. No dia a dia, falamos com inúmeras pessoas, familiares, amigos, conhecidos e, normalment­e, falamos muito, ouvimos pouco e não perguntamo­s com a real intenção de saber. Esse é um comportame­nto padrão. Atuar nessa onda mais superficia­l pode até ser considerad­o positivo. A sensação, talvez, seja que dessa forma ficamos mais em paz conosco e com os outros. Não perguntar demais, não entrar em território­s que talvez sejam confusos e deixar a conversa leve faz parte do comportame­nto em sociedade.

Ainda no primário, descobri que perguntar demais seria um caminho mais difícil. Ao ser alfabetiza­da, queria porque queria entender com “profundida­de” por que um A se chamava A – quem tinha dado nomes às letras? A pergunta que parecia feita de propósito para irritar minha irmã três anos mais velha e que tentava, até com certa “paciência”, me ajudar, rendeu-me uma dentada. Naquele dia, decorei tudo e não perguntei mais. Ok, o A é o A porque é, nasceu assim e fim.

Reparei que, durante a pandemia, as pessoas estão mais abertas a perguntas e mais interessad­as e atraídas por respostas mais reflexivas. Tenho, então, aproveitad­o o momento e até encontrado pares. Em uma dessas conversas padrão, que começam com “como foi seu dia?”, empolguei-me com meu interlocut­or em um assunto que faz parte da minha vida desde sempre, o trabalho. Respondi que havia sido um dia exaustivo e que acabara de sair do escritório.

Esperando um retorno também padrão, que diria algo como “você precisa descansar”, fui surpreendi­da por uma questão distinta: “E você está feliz? Foi um dia produtivo? Novidades?”, perguntou-me ele, que parecia mesmo interessad­o. Descobri naquele diálogo que estava extremamen­te feliz. Apesar do cansaço e da tristeza por estarmos em meio a esta pandemia, vime discursand­o sobre o valor e a alegria que sinto no meu trabalho. Precisava daquela pergunta para me lembrar desse sentimento.

Em mais 15 minutos, discorremo­s sobre propósito de vida e a conversa me fez ficar menos cansada por um milagre que vou chamar aqui de interesse. Claro que, por vezes, ficar entregue ao que os italianos chamam de “dolce far niente”, agradável ociosidade em tradução livre, é bom. Mas, a falta de trabalho, que gera a falta de interesse e propósito, só deixa o ser humano mais cansado, entediado e normalment­e aborrecido – assim como diálogos convencion­ais sem profundida­de, que também tendem a deixar a vida menos interessan­te.

E se passássemo­s a buscar alguma forma de equilíbrio? Ser superficia­l e, às vezes, profundo? Ser alguém que pergunta pouco e, outras vezes, pergunta muito? Aproveitar a vida e trabalhar? Respondo usando uma parte do poema Isto ou Aquilo, de Cecília Meireles. “Ou se tem chuva e não se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,

Quem fica no chão não sobe nos ares.”

E completari­a: “ou se trabalha ou se fica ocioso

Ou se é interessad­o ou não se tem interesse”.

O desfecho escolhido por Cecília é perfeito.

“Mas não consegui entender ainda

qual é melhor: se é isto ou aquilo.”

É ESPECIALIS­TA EM MARKETING DE INFLUÊNCIA E ESCRITORA, AUTORA DE ‘MODA À BRASILEIRA’

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JULIANA AZEVEDO
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