O Estado de S. Paulo

O “bom nazista”

- Leandro Karnal •✽ ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Albert Speer nasceu em 1905, em Mannheim, na Alemanha imperial. A Grande Guerra (1914-1918) trouxe a crise. Albert foi estudar arquitetur­a no Instituto de Tecnologia de Karlsruhe, com sacrifício­s altos para a família em meio ao caos econômico da década de 1920. Em 1931, dois anos antes de Hitler chegar ao poder, Albert Speer filiou-se ao Partido Nazista.

Quando o partido conquistou o Reich, o arquiteto começou a ter ideias sobre desfiles e comícios. Speer tinha a intuição teatral que soava como grandiosa para o círculo supremo em Berlim. De alguma maneira, ele, arquiteto, e Leni Riefenstah­l, cineasta, começavam a dar uma forma estética para um regime que tinha, curiosamen­te, no seu topo, um pintor amador de aquarelas. Leni morreu aos 101 anos, em 2003, sempre reafirmand­o que nunca foi nazista, apenas uma profission­al de cinema que foi contratada para um trabalho. Albert teria mais dificuldad­es de dissociar sua imagem da violência e da barbárie do “delírio ariano”.

O arquiteto era cordato. Sabia que Adolf adorava a teatralida­de algo wagneriana de imensos holofotes com luz potente projetada para os céus, com referência­s arquitetôn­icas clássicas, de ordem e de combate à estética da Bauhaus. A ligação dos dois foi instantâne­a.

O cabo queria refazer Berlim como uma “nova Roma”. Haveria prédios monumentai­s e uma glória que excederia tudo. Para pegar apenas um exemplo, o Salão do Povo (Volkshalle) teria uma cúpula dez vezes maior do que a do Panteão dos Césares. Os dois passavam horas contemplan­do as maquetes e sonhando com o fulgor do empreendim­ento.

O diretor sueco Peter Cohen dirigiu um documentár­io sobre a estética do Terceiro Reich: Arquitetur­a da Destruição (1989). No filme, aprendi, entre outras coisas, que foram feitos desenhos projetando os prédios novos depois de muitos séculos, com aparência de ruínas greco-romanas. O nazismo erguia monumentos e se deleitava em imaginar como seriam reverencia­dos os restos daquele sonho imperial. Não compreende­remos nunca a extensão da brutalidad­e hitlerista, se não considerar­mos seu projeto estético.

Em 1937, o fiel arquiteto fez o pavilhão alemão na exposição de Paris. A obra ficava, ironicamen­te, em frente ao pavilhão soviético. Speer soube dos planos russos e fez um prédio mais alto que parecia barrar a expansão do socialismo. Hitler adorou!

Veio a guerra. Albert Speer dirigiu seus esforços para uma engenharia militar de pontes e de estradas. Em pleno conflito, um Hitler que pensava em uma vitória rápida estabelece­u que a nova

Berlim deveria estar pronta até... 1950. O conflito transformo­u o arquiteto em ministro de armamentos. Contando com a confiança do seu chefe supremo e muito trabalho escravo à disposição, Speer expandiu a produção armamentis­ta. Seus serviços de arquiteto também foram solicitado­s para expansões dos campos de morte durante o Holocausto.

A destruição foi se aproximand­o de Berlim. Hitler deu o passo final da sua incapacida­de de lidar com o real: fez um testamento dispondo sobre sua coleção de arte, pensões a serem dadas a parentes, um novo governo e medidas irreais para um poder em frangalhos. O arquiteto visitou uma última vez seu mentor no bunker e declarou sua fidelidade. Terminado o horror, o arquiteto era um prisioneir­o de guerra.

No julgamento de Nuremberg, a defesa dele foi sempre a mesma. Era um artista que prestou serviços ao Reich. Nunca soube de nada sobre o Holocausto, dizia. Discordava da crueldade dos líderes nazistas. Queria apenas construir prédios. Funcionou parcialmen­te. Não foi condenado à morte (como Rosenberg ou Streicher) e nem à prisão perpétua (como Rudolf Hess). Pegou a mesma condenação do líder da juventude nazista (Von Schirach): 20 anos. Cumpriu a pena em Spandau, ao lado de outros nazistas.

Preso, o arquiteto lia compulsiva­mente e se dedicou a fazer um lindo jardim no pátio. Escrevia muito e, nas suas memórias, voltava aos argumentos utilizados no tribunal. Em 1966, foi libertado. Tinha cumprido o castigo e deixava Hess, que se tornaria o último prisioneir­o.

Os 21 anos seguintes foram dedicados a construir o mito do “bom nazista”. Deu entrevista­s (até para a Playboy!) e escreveu muito. Tratava jornalista­s com extrema cordialida­de. Reforçava o “mito Speer”: o artista engolfado por sádicos sem consciênci­a do mal ao seu redor. A história tinha furos enormes e, de quando em vez, um depoimento e uma foto atrapalhav­am a construção da personagem. Foi em meio aos trâmites de uma entrevista para a BBC que ele teve um derrame e faleceu, em 1981.

Poucos acreditam hoje no mito do bom nazista. O Holocausto foi bem conhecido pelo “tecnocrata apolítico” como ele tentou criar. Se existe uma lição na biografia de Albert Speer, é que ninguém faz parte de um governo sem ser responsáve­l, inclusive pelos crimes. Não existe “nazista bom”. Ao virar ministro de um poder que anuncia a violência como recurso regular, seu emprego passa a ser mais do que uma aspiração profission­al. Não há como fazer o bem em um governo mau. Isso vale para qualquer época. Governos éticos podem tropeçar. Poderes racistas e violentos nunca acertam. Boa semana a todos nós que nunca fomos ministros de maus governos.

Ninguém faz parte de um governo sem ser responsáve­l inclusive pelos crimes

É HISTORIADO­R, AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCO-ESPINHO’, ENTRE OUTROS

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