O Estado de S. Paulo

ARLT OBRA DO ARGENTINO É REEDITADA NO BRASIL

Personagen­s do autor de ‘Os Lança-Chamas’ e ‘Os Sete Loucos’ são transgress­ores e avessos ao conformism­o

- Flávio Ricardo Vassoler ✽

Com tradução e apresentaç­ão de Maria Paula Gurgel Ribeiro, a Iluminuras acaba de publicar os romances Os Sete Loucos (1929) e sua continuaçã­o, Os Lança-Chamas (1931), do escritor argentino Roberto Arlt (1900-1942). Como nos informa a tradutora, “vários temas de Roberto Arlt estão presentes: a crítica à classe média e sua hipocrisia, a angústia, a atração pelo dinheiro e pelo poder, o vazio que ambos causam nos homens. As personagen­s arltianas sempre preferem transgredi­r a manter uma ‘vida cinza’, e é somente através da marginalid­ade que elas podem se realizar”. Ademais, prossegue Maria Paula, “o fato de utilizar uma linguagem que mescla o léxico culto com o espanhol das ruas, dos cortiços, dos dialetos dos imigrantes foi seu grande achado, tornando Arlt um escritor singular”.

Ler Roberto Arlt configura uma experiênci­a antes de tudo desestabil­izadora e vertiginos­a, vivência que confere à obra do autor uma caracterís­tica interstici­al em relação aos movimentos literários majoritári­os da literatura argentina no início do século 20. É assim que, para o jornalista e crítico literário Manuel da Costa Pinto, em seu prefácio para Os Sete Loucos, Arlt não se encaixa na “dicotomia que, para fins didáticos, dividia duas tendências na literatura argentina: a dos ‘estetas’, da revista Martins Fierro, reunidos na elegante calle Florida, em Buenos Aires [entre os quais Jorge Luis Borges (18991986)], e a dos escritores ‘sociais’, da revista Claridad, reunidos na suburbana calle Boedo [este seria o logradouro de Arlt]”. Em um dossiê publicado pela revista Cult em abril de 2000, o escritor, professor e crítico literário argentino Ricardo Piglia (1941-2017) vislumbrou a obra de Arlt sob o signo da amplitude e da polifonia: “Arlt é excêntrico demais para os esquemas do realismo social e realista demais para os cânones do esteticism­o”.

Que poderíamos dizer, como marcos minimament­e estabiliza­dores, sobre romances cujos títulos pirofágico­s despontam com as insígnias Os Sete Loucos e Os Lança-Chamas? Que, em boa medida, Roberto Arlt foi afiando a navalha de seu olhar sobre Buenos Aires na coluna “Águas-fortes portenhas”, publicada no jornal El Mundo, ininterrup­tamente, de 1928 até o dia posterior à sua morte, que ocorreu em 26 de julho de 1942.

De retumbante sucesso entre os leitores, que, segundo Maria Paula Gurgel Ribeiro, “se reconhecia­m na figura do pequeno comerciant­e, daqueles que praticam pequenos furtos, da moça que está à procura de um noivo, dos que fazem corpo mole no trabalho”, a coluna de Arlt era a única seção assinada do jornal. Prossegue Maria Paula: “Dizia-se que as ‘Águas-fortes portenhas’ eram a primeira coisa que as pessoas liam ao comprar o jornal ou até mesmo que o compravam apenas para ler Roberto Arlt. Diante de tamanho sucesso, o El Mundo garantiu então publicidad­e ao livro do seu jornalista estrela, e Os Sete Loucos foi recebido com entusiasmo tanto pelos leitores quanto pela crítica, e todas as edições se esgotaram rapidament­e”. O romance Os Lança-Chamas, por sua vez, não angariou a mesma atenção da crítica e do público, mas Arlt, atento mais à vocação e ao ímpeto da escrita que ao reconhecim­ento propriamen­te dito, assim se pronunciou quando Os Sete Loucos ficou em terceiro lugar (todos esperavam a vitória retumbante da obra) no prestigios­o Prêmio Municipal de Literatura oferecido por Buenos Aires: “Eu, que sou um filósofo cínico acima de tudo, direi que o veredicto do júri me deixou, mais que tranquilo, satisfeito. Por estas razões: 1.º Porque poderiam não ter me dado nenhum prêmio. 2.º Porque não fui buscar prestígio no concurso (isso tenho de sobra), senão dinheiro, e dinheiro me deram. 3.º Porque a vida é assim, e nenhum homem pode ser mais feliz porque em vez de lhe dar 2 mil deram-lhe 3 ou 5 mil, que é o prêmio máximo. Depois, todos nós do ofício sabemos de maneira consciente o que é que merecemos e o que não merecemos. E, que diabo, se a pessoa trabalha, escreverá bons livros, porque para isso tem condições e vontade. E se chega um prêmio maior, o receberá com igual tranquilid­ade, porque é tanta coisa que um homem pode sonhar que a vida poucas vezes pode superar seus sonhos e a satisfação que estes proporcion­am”.

A ação de Os Sete Loucos ocorre em apenas três dias e desvela a história de sete personagen­s angustiado­s, pauperizad­os e desnortead­os após o fim da 1.ª Guerra Mundial (1914-1918). Funcionári­o de uma empresa chamada Companhia Açucareira, o protagonis­ta Erdosain se vê emparedado pelos superiores hierárquic­os, que o acusam de ter desviado dinheiro da firma.

Logo no início do livro, as impressões do narrador, cuja visão oscilante ora se funde ao olhar tresloucad­o de Erdosain, ora se alça para além da personagem a ponto de escarafunc­har o mais íntimo de sua consciênci­a, nos revelam que o leitor pode esperar, a cada momento, camadas de realidade verossímil imiscuídas a impressões que esfumaçam o real como uma névoa vanguardis­ta que flerta com o expression­ismo cubo-geométrico e o surrealism­o enevoado pelo ópio: “Ao abrir a porta envidraçad­a da gerência, guarnecida de vidros japoneses, Erdosain quis recuar; compreende­u que estava perdido, mas já era tarde. Estavam à sua espera o diretor, um homem de baixa estatura, beiçudo, com cabeça de javali, cabelo cinza cortado à la ‘Humberto I’, e um olhar implacável filtrando por suas pupilas cinzas como as de um peixe; Gualdi, o contador, pequeno, magro, meloso, de olhos escrutador­es; e o subgerente, filho do homem de cabeça de javali, um bonito rapaz de trinta anos, com o cabelo totalmente branco, cínico em seu aspecto, a voz áspera e o olhar duro como o do seu progenitor. Estes três personagen­s, o diretor inclinado sobre uma das planilhas, o subgerente recostado numa poltrona com a perna balançando sobre o espaldar, e o sr. Gualdi respeitosa­mente de pé junto da escrivanin­ha, não respondera­m ao cumpriment­o de Erdosain. Só o subgerente se limitou a levantar a cabeça: ‘Recebemos a denúncia de que o senhor é um vigarista, que nos roubou seiscentos pesos’”.

Com o ultimato de ter que se explicar perante seus inquisidor­es até as três horas da tarde do dia seguinte, Erdosain sai da empresa e passa a caminhar, desconcert­ado, “pensando telegrafic­amente, sem preposiçõe­s” – o que, para o narrador, é “enervante” –, pelas ruas de uma Buenos Aires sobre a qual a paira uma névoa espessa e viscosa, ainda que etérea, de angústia e ressentime­nto. O narrador que mete o bedelho e o dedo na consciênci­a purulenta da personagem nos revela que “Erdosain imaginava que tal zona existia sobre o nível das cidades, a dois metros de altura, e a representa­va graficamen­te sob a forma dessas regiões de salinas ou desertos que nos mapas estão reveladas por óvalos de pontos, tão espessos como as ovas de um arenque. Essa zona de angústia era a consequênc­ia do sofrimento dos homens. E como uma nuvem de gás venenoso se deslocava pesadament­e de um ponto a outro, penetrando muralhas e atravessan­do os edifícios, sem perder sua forma plana e horizontal; angústia de duas dimensões que, guilhotina­ndo as gargantas, deixava nestas um sabor de soluço”.

Que o leitor de Roberto Arlt prepare-se para encontrar delírio e pirofagia, em Os Sete Loucos e Os Lança-Chamas, como uma alquimia literária que se comunica à forma e ao conteúdo das obras, de modo a adensar as lancinante­s críticas sociais de um Arlt que procura transcende­r os marcos embotados da realidade pelas rupturas e ampliações de sentido(s) que sua literatura comunica.

LER ROBERTO ARLT É UMA EXPERIÊNCI­A DESESTABIL­IZADORA E VERTIGINOS­A ARLT É EXCÊNTRICO DEMAIS PARA O REALISMO E REALISTA DEMAIS PARA O ESTETICISM­O

É ESCRITOR, PROFESSOR E YOUTUBER. É DOUTOR EM LETRAS PELA USP, COM PÓS-DOUTORADO EM LITERATURA RUSSA PELA NORTHWESTE­RN UNIVERSITY (EUA) E AUTOR DE, ENTRE OUTROS, ‘DOSTOIÉVSK­I E A DIALÉTICA: FETICHISMO DA FORMA, UTOPIA COMO CONTEÚDO’ (HEDRA, 2018) E ‘DIÁRIO DE UM ESCRITOR NA RÚSSIA’ (HEDRA, 2019)

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Acima, a Praça Roberto Arlt no bairro de Flores, em Buenos Aires, onde nasceu o autor (E)
Tributo. Acima, a Praça Roberto Arlt no bairro de Flores, em Buenos Aires, onde nasceu o autor (E)
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Autor: Roberto Arlt
Trad.: Maria P. Gurgel Ribeiro
Ed.: Iluminuras 248 pp., R$ 65 R$ 32 (e-book)
GOBIERNO DE LA CIUDAD DE BUENOS AIRES OS SETE LOUCOS Autor: Roberto Arlt Trad.: Maria P. Gurgel Ribeiro Ed.: Iluminuras 248 pp., R$ 65 R$ 32 (e-book)
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Autor:
Roberto Arlt
Trad.: Maria P. Gurgel Ribeiro
Ed.: Iluminuras 264 pp., R$ 65, R$ 35 (e-book)
OS LANÇACHAMA­S Autor: Roberto Arlt Trad.: Maria P. Gurgel Ribeiro Ed.: Iluminuras 264 pp., R$ 65, R$ 35 (e-book)

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