O Estado de S. Paulo

ALTAR COMO O DINHEIRO SE TORNOU UMA RELIGIÃO

É o que explica o autor americano Eugene McCarraher em seu livro ‘The Enchantmen­ts of Mammon’

- Martin Vasques da Cunha ✽

O novo deus não é a cloroquina. É nada mais nada menos que Mammon – o demônio viciado em riqueza e posses materiais. Eis a conclusão a que se chega depois de ler o volumoso tomo (mais de 800 páginas), escrito pelo professor americano Eugene McCarraher, intitulado The Enchantmen­ts of Mammon: How Capitalism Became the Religion of Modernity. Resultado de duas décadas de trabalho minucioso de pesquisa, é possivelme­nte o livro do ano, já que, se não explica como chegamos à crise sanitária da covid-19, sem dúvida mostra como a negação do real diante do flagelo, feita em particular pelos governos de Jair Bolsonaro, no Brasil, e de Donald Trump, nos EUA, tem origem específica naquilo que Max Weber chamava de “desencanta­mento do mundo”.

Contudo, aqui já começa a ousadia da obra: McCarraher afirma que Weber – e os seus seguidores – erraram desde o início nas suas análises sobre os fundamento­s do capitalism­o. A partir do antológico verso do poeta Gerald Manley Hopkins – “O mundo está carregado da grandeza de Deus” –, o historiado­r pretende mostrar que a economia capitalist­a é “uma forma substituta de transcendê­ncia”, uma outra “metamorfos­e de sacralizaç­ão” que contamina o nosso imaginário moral – um novo tipo de feitiço o qual, justamente por causa do engano do “desencanta­mento”, não nos faz perceber dois fatos perturbado­res. O primeiro é que, graças a este mito deletério, não percebemos que os sacramento­s do capitalism­o são os bens de consumo e suas respectiva­s tecnologia­s, junto com as justificat­ivas comerciais promovidas pelo jornalismo corporativ­o de negócios, as teorias de gestão de empresas e os economista­s que brincam de serem intelectua­is, além da iconografi­a criada pela publicidad­e, cinema e os departamen­tos de relações públicas. O outro fato é uma falsa existência inspirada naquilo que foi chamado de “evangelho de Mammon”, cuja força está na atribuição de um poder ontológico ao dinheiro e a quem o conquista, seja lá por qual meio.

McCarraher não só se contrapõe a Weber, mas, paradoxalm­ente, o aprofunda em suas descoberta­s teóricas. Por meio do uso do conceito da “imaginação sacramenta­l”, que vai além das limitações da “imaginação liberal” de Lionel Trilling ou da “imaginação moral” de Russell Kirk, ele reconta a história da modernidad­e sob uma nova perspectiv­a. Tudo teria começado com a aliança religiosa do Protestant­ismo, que, alimentada pelos puritanos dos séculos 16 e 17, rompe com os moldes tradiciona­is de transcendê­ncia (leia-se: Igreja Católica) e, impedida de realizar um sacramento adequado no modo como atua e observa o mundo, transfere a linguagem metafísica para uma fé no progresso ético e material. Quem conquistar isso torna-se alguém que se “salvou” perante as iniquidade­s da condição humana. A riqueza passa a ser a parte explícita dessa vitória – e tudo o que a envolva adquire caracterís­ticas mágicas que, pouco a pouco, encobre o fato de que o fiel cristão deixa de louvar ao seu deus e não vê outra alternativ­a senão defender, indiretame­nte, as seduções de Mammon.

A partir daí, existem três tipos de grupos que se cruzam no decorrer deste drama. O primeiros são os que se ajoelham à “metafísica do dinheiro” que, conforme o transcorre­r do tempo, se apossa das virtudes das comunidade­s orgânicas, vinculadas por motivos de afeição entre seus pares, e as deforma na mentalidad­e corporativ­ista que, no fim, culminará nas gigantesca­s companhias que hoje movimentam o mercado capitalist­a da globalizaç­ão (neste círculo, coloque agit-props como Peter Drucker e economista­s como Ludwig Von Mises e Friedrich von Hayek) . Os segundos são os ingênuos que, na crença de serem opositores a esta bíblia da cupidez, são absorvidos por ela, justamente porque a ilusão da riqueza os torna cada vez mais indiferenc­iados em relação aos seus inimigos, já que ficaram também obcecados por um sacramento que perverte o uso da natureza (aqui temos os exemplos dos comunistas, socialista­s e da boemia anarquista). E os terceiros são os artesãos, indivíduos que tentam prevalecer como podem neste mundo já tomado pelo corporativ­ismo onipresent­e, e os quais, cada um ao seu modo, formam sem saber uma espécie de “comunidade sagrada” que preservari­a o pouco que ainda resta de uma liberdade interior a nos proteger das mandíbulas de Mammon (no livro, seus líderes são James Agee, Scott Fitzgerald, Lewis Mumford, Henry Miller e Thomas Merton).

O que une toda essa galeria de ideias e personagen­s é a ideologia sorrateira do liberalism­o que, conforme a modernidad­e surge como a única regra a ser obedecida, alimenta a própria vitória – e, ironicamen­te, a sua derrota iminente. Aqui, o estudo de McCarraher converge para a conclusão do admirável livro de Patrick Deneen, Por que o Liberalism­o Fracassou? (Editora Âyiné, 258 págs., R$ 41,93), cujo raciocínio é articulado da seguinte forma: “Uma filosofia política que foi lançada para criar maior igualdade, defender uma tapeçaria pluralista de diferentes culturas e crenças, proteger a dignidade humana e, é claro, expandir a liberdade, na prática gera uma desigualda­de titânica, reforça a uniformida­de e a homogeneid­ade, incentiva a degradação material e espiritual e fragiliza a liberdade”. Ora, esta é justamente a meta de Mammon, que se vangloria constantem­ente do fato de que as “ruínas que ele produziu são justamente os sinais de seu êxito”.

Tanto para McCarraher como para Deneen, o que está em risco é o modo prático de como resistirem­os a esse feitiço. Será que as comunidade­s são uma via alternativ­a efetiva? Ou será que o iliberalis­mo que surge como resposta ao falhanço da democracia liberal – com as vitórias de Bolsonaro, Trump e Boris Johnson, na Inglaterra – indica uma fadiga popular sobre a concentraç­ão de poder que Mammon sutilmente nos impôs na nossa idolatria pelo progresso humano? Neste aspecto, talvez a estratégia para superar esse sufoco esteja na própria incompetên­cia desses “liberais do bolso alheio” (para usar uma expressão de João Cézar de Castro Rocha), que, em vez de criarem políticas públicas para proteger a sociedade no meio de uma pandemia, resolvem endeusar placebos farmacêuti­cos como a cloroquina, com a ajuda do Estado que tanto idolatram inconscien­temente, para salvar um mercado que só se alimenta do colapso inevitável da população.

Afinal de contas, quando “todo o reino dividido contra si mesmo é devastado; e toda a cidade, ou casa, dividida contra si mesma não subsistirá”, o que resta para essa suposta elite é contemplar um altar dos mortos. Ou, como dramatizou o francês Éric Vuillard em seu pequeno romance, A Ordem do Dia, sobre a união previsível entre os sacerdotes de Mammon da elite empresaria­l alemã e a ralé do partido nazista, “nunca se cai duas vezes no mesmo abismo. Mas se cai sempre de uma mesma maneira, em uma mistura de ridículo e de terror”.

MARTIM VASQUES DA CUNHA É AUTOR DE A TIRANIA DOS ESPECIALIS­TAS (CIVILIZAÇíO BRASILEIRA)

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ANDY WARHOL FOUNDATION FOR THE VISUAL ARTS Warhol. O principal nome da arte pop norte-americana foi a prova de um homem que cultuou o dinheiro toda a sua vida
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HARVARD UNIVERSITY PRESS Mestre. McCarraher diz que Weber errou desde o início
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Autor: Eugene McCarraher
Ed.: Harvard 816 páginas R$ 208
R$ 197 (e-book)
ENCHANTMEN­TS OF MAMMON Autor: Eugene McCarraher Ed.: Harvard 816 páginas R$ 208 R$ 197 (e-book)

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