Eugênio Bucci
O Dilema das Redes mostra como conglomerados globais controlam os fluxos de informação. Se isso não for invertido, babau.
Se ainda não viu, você precisa ver o filme O Dilema das Redes, do diretor americano Jeff Orlowski. Está na Netflix. Um time pesado de ex-executivos dos conglomerados digitais (Facebook, Google, etc.) vem a público para fazer declarações aterradoras. Os entrevistados contam que a manipulação dos humores da humanidade nunca foi tão intensa, tão eficiente, tão generalizada e ao mesmo tempo tão personalizada (são técnicas de dominação de massa que se disfarçam de agrados individualizados). Contam os fatos, mostram como e explicam por quê.
Segundo eles, o big data e a inteligência artificial conseguem viciam seus usuários (tese corroborada pela professora de Psiquiatria e Ciências Comportamentais Anna Lembke, da Universidade Stanford) e podem ser usados para distorcer processos eleitorais (vide os escândalos da Cambridge Analytica no Reino Unido e nos Estados Unidos), promover perseguições sanguinárias contra minorias (como foi feito com os muçulmanos da etnia rohingya em Mianmar) e excitar bandos de bobos fantasiados de bandeira a idolatrar um bobo sozinho fantasiado de político (o filme mostra um destacamento de bolsonaristas saltitantes gritando em coro: “Feicibuquê, feicibuquê”; parece uma encenação, mas aconteceu de verdade).
Quem ainda tinha dúvidas sai da sessão convencido de que temos um problema: uma rede de silício aprisiona aquilo que um dia pensamos em chamar de civilização. São exceos, ex-vice-presidentes, ex-diretores de monetização e ex-designers abrindo o jogo. Não se trata de resmungos de quem não ganhou dinheiro. São insiders, e são vários.
Mas há uma falha (grave) no filme, é bom avisar logo. Para melhor descrever o funcionamento da manipulação digital os produtores resolveram incluir no roteiro, que deveria ser estritamente documental, uma trama de ficção cheia de efeitos especiais mostrando os dramas de uma família com dois adolescentes que não conseguem passar um minuto sequer sem bolinar o smartphone. A história de mentirinha faz O Dilema das Redes parecer um panfleto catastrofista. Estraga o filme. Compreende-se que o objetivo do diretor com sua abominável parte ficcional foi tornar o assunto mais palatável para plateias adolescentes, que não suportam 30 segundos de abstração. Compreende-se, mas não se perdoa. Ao ver o filme, dê um desconto e siga em frente. Os depoimentos, pelo menos eles, valem a pena.
O semidocumentário nos põe frente a frente com o maior desafio já enfrentado pela ordem democrática desde o fim da guerra fria. Sem exagero. Se os processos decisórios das democracias seguirem se pautando pelos parâmetros dos algoritmos (que acionam pulsões inconscientes e obstruem a razão), as sociedades que se dizem livres entrarão em surto sistêmico terminal. A democracia passará a produzir, em série, líderes que a negam e trabalham para sabotála. Se nada for feito, o destino será esse. Inexoravelmente.
Para entender a lógica do estrago é preciso levar em conta a desproporção entre a comunicação minimamente racional, baseada em fatos e argumentos, e a comunicação das redes digitais, que se apoia apenas nas paixões baixas (ódio, fúria, inveja, sentimentos violentos). A primeira, cultivada pela imprensa, é soterrada pela segunda, monopolizada pelos conglomerados da internet. No Brasil, hoje, os jornais contam seus assinantes na casa dos milhares. O Facebook sozinho tem 2,6 bilhões de usuários ativos no mundo. Haja assimetria!
Estamos ao sabor dessa lógica. Anteontem, o representante de uma nação foi à ONU e leu (aos soquinhos, leu mal) um discurso escabroso, coalhado de inverdades. No dia seguinte, jornais do mundo todo desmascararam suas mentiras. E daí? Nada mudou. As redes sociais o aplaudiram, e são elas que prevalecem.
Os entrevistados de O Dilema das Redes admitem as práticas desleais e desumanas. Alguns assumem, finalmente, que o modelo do negócio das big techs é mesmo comercializar os olhos e os dados de seus “usuários”. O que fazer? Uns dizem que proíbem os filhos de ter rede social. Falam em regulação, mas de forma vaga. Em matéria de solução, o filme não propõe grande coisa.
O problema central nesse imbróglio planetário tem nome que precisa ser pronunciado: monopólio global. O filme não trata disso, mas a gente trata. Esse monopólio está acima das legislações nacionais. Os conglomerados monopolistas (como Google, Amazon, Facebook) só podem ser quebrados nos Estados Unidos e na União Europeia. As chances são remotas. Se seguirem intactos, continuarão com o extrativismo de olhar e de dados pessoais – e a sociedade jamais saberá de que forma e para que fim esse olhar e esses dados são comercializados. Nós não sabemos como funcionam os algoritmos. Não sabemos sequer quanto esses grupos faturaram em publicidade no Brasil de cinco anos para cá.
Os conglomerados globais controlam cada bit do fluxo de informações naquilo que Octavio Ianni chamou de “sociedade civil global” – e essa sociedade não sabe nada sobre eles (a não ser pelas inconfidências eventuais de executivos arrependidos). Se isso não for invertido, babau.
Conglomerados globais controlam o fluxo de informações. Se isso não for invertido, babau