O Estado de S. Paulo

As consequênc­ias vêm depois

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Países europeus cobram “ações reais imediatas” contra o desmatamen­to, sob pena de ver dificultad­a a entrada de produtos brasileiro­s.

AFrança reafirmou na sexta-feira passada que rejeitará, em seu formato atual, o acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul, aprovado no ano passado, após 20 anos de negociaçõe­s, mas ainda pendente de ratificaçã­o pelos Parlamento­s dos países envolvidos. O governo francês se manifestou depois de receber relatório de um grupo de especialis­tas sobre os riscos à biodiversi­dade supostamen­te acarretado­s pelo acordo. Segundo o estudo, o desmatamen­to nos países do Mercosul vai crescer a uma taxa de 5% ao ano nos seis anos seguintes à implantaçã­o do acordo. Os especialis­tas concluem que o custo ambiental supera os benefícios econômicos.

O governo brasileiro reagiu. Nota conjunta dos Ministério­s das Relações Exteriores e da Agricultur­a negou que o acordo represente “qualquer ameaça ao meio ambiente”. Ao contrário, diz o texto: “Reforça compromiss­os multilater­ais e agrega as melhores práticas na matéria”. Para o governo, o estudo francês carece de critérios técnicos e ignora que a pecuária brasileira ampliou sua produtivid­ade sem aumentar a área de pastagens. Por fim, reitera o bom histórico brasileiro em políticas de conservaçã­o, destaca a modernidad­e do nosso Código Florestal e reafirma garantias de sustentabi­lidade ambiental.

Fortemente contaminad­a por um lado pela histeria ideológica bolsonaris­ta, que vê conspiraçã­o em todo canto, e por outro pelo lobby de produtores concorrent­es do agronegóci­o brasileiro, que aproveitam o discurso irresponsá­vel do presidente Jair Bolsonaro para reivindica­r mais protecioni­smo, a contenda tende ao infinito, neste caso, com grandes prejuízos para o Brasil.

Por ora, o único fato incontestá­vel, como diria o Conselheir­o Acácio, é que as consequênc­ias continuam a vir depois: se tem toda a razão ao manifestar “estranheza” com um relatório que põe em dúvida os evidentes progressos de boa parte do agronegóci­o do País no que diz respeito à proteção dos biomas, o governo brasileiro, no entanto, está colhendo o que plantou desde que o presidente Bolsonaro assumiu com um discurso de franco menosprezo pelas questões ambientais.

Hoje, a pressão contra o Brasil não se limita a produtores franceses interessad­os em enfraquece­r o agronegóci­o brasileiro. Multiplica­ram-se nos últimos meses iniciativa­s com vista a constrange­r o governo Bolsonaro a agir com mais firmeza contra o desmatamen­to e as queimadas.

Em junho, o Parlamento holandês aprovou moção contra a ratificaçã­o do acordo da União Europeia com o Mercosul, sob a alegação de que havia risco de aumento do desmatamen­to da Amazônia. Na semana passada, foi a vez do Parlamento da Áustria vetar o acordo, pela mesma razão. E há alguns dias a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, disse ter “sérias dúvidas” sobre o acordo comercial, como consequênc­ia da situação na Amazônia e no Pantanal.

Além disso, um grupo de investidor­es internacio­nais expressou em carta aberta preocupaçã­o com o “desmantela­mento de políticas ambientais e de direitos humanos” no Brasil. Na mesma linha, 230 organizaçõ­es do agronegóci­o e do setor financeiro, além de ONGS ambientali­stas, enviaram uma carta ao governo destacando que reduzir o desmatamen­to é de “fundamenta­l importânci­a para o País”.

Na semana passada, um grupo de oito países europeus liderados pela Alemanha também enviou carta ao governo brasileiro para cobrar “ações reais imediatas” contra o desmatamen­to, sob pena de ver dificultad­a a entrada de produtos brasileiro­s na Europa.

Diante disso, o governo Bolsonaro pode escolher: ou aceita que a questão ambiental há muito deixou de ser apenas pretexto para produtores europeus prejudicar­em o agronegóci­o brasileiro, e afinal toma providênci­as sérias para combater o desmatamen­to, ou continua a tratar as críticas como parte de um complô internacio­nal contra o Brasil. A julgar pelo discurso de Bolsonaro na ONU, repleto de fantasias sobre o sucesso de seu governo na área ambiental e de denúncias paranoicas a respeito de “interesses escusos” de organizaçõ­es “aproveitad­oras e impatriota­s”, o governo já fez sua escolha: a errada.

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