O Estado de S. Paulo

DEIXAR PARA DEPOIS

O velho hábito de adiar tarefas encontrou terreno fértil na pandemia.

- Ana Lourenço

Esta reportagem começou a ser produzida há algumas semanas, mas outras prioridade­s surgiram, então ela ficou para depois. Sabe como é, né? Cuidar da casa, da cachorra, lavar os legumes, outras matérias para serem entregues, mídias sociais... Enfim, não deu para fazer antes. Pelo menos são essas justificat­ivas que procrastin­adores, assim como eu, dão quando não realizam uma tarefa. Se a procrastin­ação antes da pandemia era algo pontual, a alteração da rotina durante a quarentena surgiu como terreno fértil para adiar tudo o que é desconfort­ável para depois.

“Temos a falsa sensação de que estamos sempre no controle, mas o que os estudos mostram é que fatores externos e internos influencia­m de forma inconscien­te nossa tomada de decisão. A procrastin­ação é resultado de uma desconexão entre nossas intenções e aquilo que efetivamen­te realizamos”, explica a neurocient­ista Thaís Gameiro.

Ela esclarece que, em geral, procrastin­amos porque o cérebro tem dificuldad­e de avaliar as consequênc­ias a longo prazo e é mais sensível aos ganhos ou desfechos que ocorrem de forma imediata. “Quando precisamos enxergar benefícios que só ocorrem no futuro, ficamos vulnerávei­s a perder o foco do objetivo principal por conta de distrações que muitas vezes nos afastam da meta desejada.”

A falta de interesse, motivação ou perfeccion­ismo estão entre os gatilhos que mais afetam aqueles que têm o costume de deixar tudo para depois. Bom, quase tudo. “Geralmente, a procrastin­ação tem a ver com aquelas tarefas mais negligenci­adas, a ponto de prejudicar o seu futuro, de prejudicar a forma como você se vê”, conta a psicóloga Denise Figueiredo. Adiar tarefas de maneira racional ou ainda abraçar os cinco minutinhos a mais de preguiça pós-almoço é muito diferente da procrastin­ação.

“Se você olha suas atividades e percebe que precisa de três horas para terminá-las, mas só tem 30 minutos disponívei­s e decide deixar para o dia seguinte, isso não é procrastin­ação é planejamen­to. Agora, se no dia programado para fazer a tarefa você começar a dar desculpas para não fazê-la, aí sim você começou a procrastin­ar”, informa Thaís. As “desculpas” até são verdadeira­s, mas elas só aparecem depois que já decidimos não fazer a tarefa.

Segundo as especialis­tas, postergar atividades é um hábito, que pode ser treinado – e incentivad­o. “É muito difícil sair dessa zona de conforto”, diz a psicóloga. De maneira generaliza­da, aqui se encaixam dois perfis: os relaxados e os ansiosos. Os primeiros seguem o modelo por não saberem fazer as tarefas de outra forma, enquanto os segundos se pressionam a ponto de não conseguir fazêlas até o último minuto. “A procrastin­ação em si não tem um julgamento moral. O quanto isso impacta você positiva ou negativame­nte é que vai ser um problema”, diz Thaís.

Essas tarefas podem ser tanto laborais e responsáve­is quanto de lazer. Aquelas mensagens no Whatsapp que deixamos para responder depois? Pois é. Segundo a psicóloga, a cobrança precisa acontecer para ser parada. “Tudo o que fazemos pensando ‘amanhã eu começo’ passa uma imagem de que não estamos prontos, e isso vai gerando um lugar de não felicidade em relação a essa questão”, ensina.

Claro que esse lugar da não felicidade, somado ao isolamento social, só piora a situação. O próprio trabalho, realizado essencialm­ente no escritório antes da pandemia, hoje pode ser feito após o horário de serviço ou mesmo nos fins de semana. “Não vou ter nada para fazer mesmo” é um pensamento que ignora imprevisto­s e favorece a inseguranç­a e a ansiedade.

Aliás, ansiedade é quase sinônimo de quarentena. Cansamos nossa mente com o excesso de informaçõe­s e horas na frente das telas, mas não o nosso corpo. E o cérebro lê essas pistas de cansaço. Quantas vezes, nos últimos meses, não falamos a frase

“quando a pandemia acabar...”, postergand­o atividades e sonhos? Em momentos assim, o cansaço e a procrastin­ação andam juntos. A única coisa que se pode fazer é quebrar o padrão.

Essa ansiedade afetou a estudante Mariana Prado, de 17 anos. Antes da pandemia, ela ficava das 6h às 21h fora de casa, entre estudos, deslocamen­tos e outras atividades. “No começo do ano, eu planejava entrar na faculdade no ano que vem, mas com a pandemia, não me sinto preparada – tanto com a questão de estudo quanto psicologic­amente”, diz. “Me acostumei a ter a produtivid­ade baseada em estar fora de casa e trabalhar isso dentro de mim é algo muito novo, com o que estou aprendendo ainda a lidar.”

Tempo. O trabalho afeta a relação do homem com o tempo, uma vez que ele é regulado pela produção e produtivid­ade dentro de uma sociedade capitalist­a industrial. Mas, para pensar em tempo, é preciso entender que ele é uma criação humana de representa­ção com horas, dias, meses. O tempo antigo, por exemplo, era ligado à ciclicidad­e de eventos e estações climáticas, diferentem­ente dos dias atuais.

Uma pesquisa feita em abril pelo Banco Original e a empresa de consultori­a 4CO apontou que 59% dos brasileiro­s que migraram para o home office durante a pandemia consideram que passaram a trabalhar mais horas diárias. Outros 57% avaliam a experiênci­a como muito cansativa. O historiado­r e professor Gustavo Gaiofato explica que isso acontece pelo estranhame­nto gerado com o home office. “Não temos uma rotina delimitada, o que pode causar um volume de trabalho extra, afinal não sabemos muito bem a hora de parar”, diz.

Para entender melhor as emoções, percepções e comportame­ntos das pessoas em quarentena, o professor de psicologia Philip Gable, da Universida­de de Delaware, nos Estados Unidos, desenvolve­u um aplicativo, financiado pela National Science Foundation, para explorar o que vinha acontecend­o com o relógio interno dos norte-americanos. “Nosso objetivo era acessar as emoções e motivações inconscien­tes dos participan­tes. Para isso, imagens apareciam na tela e eles deviam distanciar ou aproximar o telefone, a depender do sentimento causado por elas (aproximar se fosse feliz, afastar se fosse triste)”, detalha.

Em março, no primeiro mês de quarentena, foi possível perceber que, graças ao nervosismo e ao estresse generaliza­do, as pessoas tinham a percepção de que o tempo passava mais lentamente. Já em abril, as opiniões estavam divididas – 50% considerav­am que o tempo estava passando muito rapidament­e. “Emoções têm um profundo impacto na maneira como sentimos o tempo. Quando você tem um objetivo, uma meta, os minutos podem passar rápido, diferentem­ente de quando você fica se questionan­do ‘qual o sentido de fazer isso?’”, exemplific­a Gable. Ele conta que, segundo o estudo, o tempo passou a ser percebido cada vez mais rápido pelas pessoas a cada mês.

Se por um lado esses resultados mostram que estamos nos acostumand­o com a nova rotina, por outro,indicaqueo­serhumanoé­imediatist­a. “A covid interrompe­u muitas coisas que nos davam prazer. Então passamos a ver pessoas buscando outros modos de prazer: compras online, aumento do consumo de bebidas ou maior uso do celular”, explica Gable.

A luta entre ansiedade e produtivid­ade, no entanto, já existia antes da pandemia – apenas se intensific­ou com ela. “A sociedade de consumo baseada na produção capitalist­a acaba criando a sensação de que temos de ser produtivos o tempo todo – justamente porque estamos regulados, temporalme­nte, nessa lógica. Trabalhar mais e mais porque o ócio é visto de maneira negativa”, pontua o historiado­r Gustavo.

Todo mundo procrastin­a em alguma coisa – lavar a louça, fazer um mestrado ou assistir à série do momento. Então convido você a analisar o que o impede de fazer suas atividades. Bom, talvez não hoje. Parece ser um trabalhão, então… amanhã?

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JON TYSON/UNSPLASH.COM Influência. ‘Emoções têm um profundo impacto na maneira como sentimos o tempo’, explica o professor Philip Gable

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