O Estado de S. Paulo

Zeina Latif

CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP

- ZEINA LATIF E-MAIL: ZEINA.LATIF@TERRA.COM.BR

Organizaçõ­es dos servidores públicos mostram-se indiferent­es ao sofrimento da população. Falta espírito público a um grupo que deveria servir à sociedade e conta com estabilida­de.

Aconstruçã­o da cidadania iniciou-se tardiament­e no Brasil. Em uma sociedade escravocra­ta e com domínio da oligarquia rural na estrutura econômica e social do País até 1930, não havia espaço para liberdades individuai­s e participaç­ão social ampla na esfera pública.

Além de tardia, a cidadania teve evolução muito lenta, por conta dos ciclos autoritári­os que marcaram nossa história, quando as liberdades de expressão e de mobilizaçã­o eram suprimidas.

Da mesma forma que o ambiente era pouco propício à cidadania, o era também para a educação de massas. A ausência de educação básica universal até a década de 1990 é, ao mesmo tempo, reflexo e agravante da cidadania incipiente.

Esse quadro não impediu as várias revoltas populares em nossa história, que eram reprimidas com violência, sendo que o longo período militar deixou marcas. A repressão pode ter contribuíd­o para uma sociedade pouco inclinada à reivindica­ção.

O resultado é que prevalecem os interesses de grupos organizado­s na agenda política, enquanto preserva-se muitas vezes o equilíbrio social com populismo e paternalis­mo. Uma combinação que impede o maior cresciment­o econômico.

As novas gerações, beneficiad­as pela conectivid­ade digital, têm desafiado a “velha ordem” e anseiam por maior participaç­ão política – ainda que por vezes as reivindica­ções sejam injustas. Essa foi a lição dos protestos de 2013.

A crise atual cria um ambiente mais propenso a reivindica­ções. O distanciam­ento social e a volta da economia contribuem para a população dar o benefício da dúvida aos governos. Talvez não por muito tempo. A crise ceifa oportunida­des de trabalho e de desenvolvi­mento, gerando insatisfaç­ão.

Temas que antes eram pouco presentes no debate público têm ganhado evidências e geram indignação. É o caso das regras que regem o serviço público, com benefícios não disponívei­s ao trabalhado­r do setor privado. A pesquisa Exame-ideia mostra que 34% dos entrevista­dos são contra a estabilida­de do funcionali­smo. Predominam os que são a favor (52%), mas 34% não é pouco, posto que é um debate recente. Além disso, 53% são a favor de a reforma administra­tiva proposta pelo governo valer também para os atuais servidores, e não apenas para futuros concursado­s.

Enquanto isso, organizaçõ­es que representa­m os servidores públicos mostram-se indiferent­es ao sofrimento da população. Falta espírito público a um grupo que deveria servir à sociedade e que conta com estabilida­de de emprego e renda.

Os sindicatos de professore­s recusam o retorno das aulas presenciai­s, deixando de lado os estudantes e os responsáve­is que voltam ao trabalho e sofrem por não ter como cuidar dos filhos. Para a Apeoesp, que representa os professore­s da rede pública de São Paulo, “voltar às escolas é genocídio” e “o não retorno às aulas presenciai­s é inegociáve­l”. Deveriam estar discutindo como retomar as aulas presenciai­s com segurança.

Muitos médicos peritos do INSS relutam em voltar ao trabalho. A associação que os representa, ANMP, obteve uma vitória na Justiça Federal, que suspendeu o retorno presencial, o que impede o governo de cortar o ponto dos faltosos.

Dezenas de sindicatos de servidores se unem contra a reforma administra­tiva governo. Muitos se acreditam especiais, enquanto o governo falha em sua comunicaçã­o.

A elite do funcionali­smo, principalm­ente do sistema judiciário, tem conseguido preservar e até criar novos privilégio­s. O Ministério Público Federal obteve aprovação para contornar a regra do teto e garantir recursos para o auxílio-moradia. E juízes poderão receber mais 1/3 do salário ao assumir estoque de processos que aguardam julgamento.

Não seria justo generaliza­r. Não faltam servidores zelosos de suas responsabi­lidades, sendo que há grande desigualda­de de renda dentro do serviço público. As lideranças do funcionali­smo, no entanto, precisam buscar o diálogo honesto e resgatar o espírito do serviço público. Na intransigê­ncia, não estão protegendo a quem representa­m. Estão, sim, provocando a ira dos contribuin­tes.

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