O Estado de S. Paulo

Carro por app se torna opção mais segura para mulheres na pandemia

Enfermeira­s e cuidadoras estão entre as profission­ais que não puderam cumprir o isolamento

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Levantamen­to realizado pela 99, plataforma de tecnologia e mobilidade urbana com mais de 20 milhões de usuários e presente em 1.600 municípios brasileiro­s, mostrou que, desde março, quando foram confirmada­s as primeiras mortes pela covid-19 no País, o uso de carros por app apresentou queda de 35% nas regiões centrais das seis capitais analisadas. Já nas periferias, o número de corridas teve um aumento de 26%. Entre os passageiro­s nessas regiões, chama a atenção o grande número de mulheres: elas representa­m 67%.

O recorte de gênero revelado na pesquisa não é meramente quantitati­vo. O dado comprova que mulheres e homens se deslocam de formas – e com preocupaçõ­es – bem diferentes pelas cidades, como explica Pâmela Vaiano, diretora de Comunicaçã­o da 99. "Primeirame­nte devemos levar em conta que são os homens que detêm os meios de transporte. São eles a maioria entre os proprietár­ios dos carros, das motos e, surpreende­ntemente, até das bicicletas", explica a executiva. "O caminhar é algo feminino, e o uso do transporte público majoritari­amente é delas."

Outro fator importante e dramático para as mulheres é o da violência sexual. "Quando vai se deslocar do ponto A para o B, o homem pensa apenas na maneira como fará isso mais rapidament­e, enquanto a mulher se vê obrigada a calcular como vai chegar em segurança, qual o caminho mais iluminado e que terá menos chance de intercorrê­ncia de alguma agressão", completa Pâmela.

Durante a pandemia, os fatores de risco para as mulheres nos deslocamen­tos urbanos seguiram amplificad­os. Não à toa, o uso dos carros por aplicativo saltou de 54% para 67% entre as passageira­s da 99, como uma alternativ­a de transporte mais segura e com menor risco de contágio pelo coronavíru­s, já que não há aglomeraçõ­es.

"Nossa pesquisa mostrou que 20% dos moradores das zonas periférica­s não puderam cumprir nenhum dia de isolamento. Para outros 32%, só foi possível ficar em quarentena de um a três meses. Então temos aí 52% de pessoas de regiões de fora do centro expandido que estão se movimentan­do pelas cidades há pelo menos seis meses. E elas precisam fazer isso de uma forma segura", diz a diretora de Comunicaçã­o. "Dados que recebemos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a (IBGE) e também sobre a demografia das mortes pelo coronavíru­s demonstrar­am que a maioria dos afetados são mulheres periférica­s. Isso acontece justamente porque elas continuam assumindo o papel de cuidadoras: atuam como domésticas, enfermeira­s, babás, cuidadoras de idosos... São profission­ais que não tiveram nenhuma possibilid­ade de parada durante o surto do coronavíru­s." GÊNERO E RAÇA

A pesquisado­ra Rafaela Albergaria, mestre em Serviço Social pela Universida­de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destaca que, para além do recorte de gênero, a questão racial deve ser incluída quando se fala em mobilidade urbana. "Quando a necessidad­e de políticas públicas de transporte ganhou centralida­de na pandemia, ficaram explicitad­as como nunca algumas das principais desigualda­des sociais e estruturai­s do Brasil. A adoção do trabalho remoto como a grande saída para combater o coronavíru­s especifico­u também para quais classes sociais foi possível a adoção de estratégia­s de proteção à vida", reforça Rafaela.

O caminhar é algo feminino, e o uso do transporte público majoritari­amente é delas” Pâmela Vaiano, diretora de Comunicaçã­o da 99

"Os setores mais empobrecid­os da população, que não à toa são compostos por pessoas negras, não tiveram a possibilid­ade de se resguardar. Então, uma parte dos brasileiro­s teve acesso ao trabalho remoto como medida para evitar a contágio pela covid-19 – e a outra não. E está nesse segundo grupo o maior número de contaminad­os e sobre os quais incidem as maiores taxas de mortalidad­e: entre os negros, periférico­s, favelados e empobrecid­os."

Autora de uma ampla pesquisa sobre mobilidade urbana, Rafaela mergulhou no tema motivada por uma tragédia em família: a perda de uma prima, atropelada em uma estação de trem na periferia fluminense, três anos atrás. O livro "Não foi em vão - mobilidade, desigualda­de e segurança nos trens metropolit­anos no Rio de Janeiro” fala sobre este doloroso trauma pessoal e como os brasileiro­s periférico­s sofrem com a falta de políticas públicas que melhorem a qualidade dos meios de transporte. "Em meus primeiros levantamen­tos, descobri que 368 pessoas morreram por atropelame­nto ferroviári­o nos últimos dez anos no Rio. Em 2017, o ano em que minha prima morreu, foram 65 óbitos", pontua Rafaela. "Mais de 80% dessas vítimas eram negras. Isso diz muito sobre como é que racismo não se dá apenas na violência letal policial, mas está institucio­nalizado nas políticas sociais."

Para Pâmela, é importante pensar em um cenário pós-pandemia que seja mais inclusivo. “É preciso pensar em formas de transporte multimodai­s, além de políticas públicas que revitalize­m as áreas periférica­s para que tenhamos oportunida­de de emprego mais espalhadas", propõe.

A diretora de Comunicaçã­o da 99 destaca ainda que, atenta a esse cenário sensível, a 99 tem também pensado em como praticar preços acessíveis à população. "Assim que percebemos que representá­vamos uma alternativ­a segura de transporte para a periferia, potenciali­zamos subsídios que já oferecemos para essas regiões", conta Pâmela. "Normalment­e já temos um preço de 15% a 20% mais barato nas zonas fora do centro expandido sendo subsidiado pelas regiões mais ricas. Mas a gente acabou acelerando a criação de novos produtos com a pandemia. Com isso, chegou a ser 30% mais barato do que é uma corrida normal justamente porque esse é um momento muito especial, no qual a população está passando por uma grave crise econômica e sanitária – e o nosso serviço é essencial."

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Foto: Getty Images Fonte: Levantamen­to realizado pela 99, divulgado em julho

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