O Estado de S. Paulo

Lei ruim para o trânsito e para a vida

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Reforma enfraquece legislação que produziu bons efeitos.

Em junho do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro fez um gesto de especial proximidad­e com o Congresso. Foi pessoalmen­te entregar ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), uma proposta do Executivo federal para abrandar penalidade­s e exigências do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). O ato foi especialme­nte significat­ivo tendo em vista que, ao longo do mandato, temas de muito maior transcendê­ncia para o País receberam um tratamento muito diferente do presidente da República. Por exemplo, a anunciada reforma administra­tiva foi entregue recentemen­te ao Congresso pelo ministro Jorge Oliveira, da Secretaria-Geral da Presidênci­a da República. É espantosa a ordem de prioridade­s que frequenta a cabeça de Jair Bolsonaro.

Agora, mais de um ano depois, o Congresso aprovou, com emendas, o projeto de lei apresentad­o pelo presidente Bolsonaro para aliviar as sanções aos infratores de trânsito. Felizmente, os parlamenta­res retiraram alguns pontos especialme­nte irresponsá­veis que constavam no texto original. De todo modo, a reforma do Código de Trânsito aprovada pelo Legislativ­o é bastante ruim, enfraquece­ndo uma legislação que vinha produzindo efeitos positivos.

O governo federal propôs, por exemplo, extinguir a penalidade para quem conduzisse o veículo com crianças fora da cadeirinha. No texto final do Congresso, a obrigatori­edade da cadeirinha foi incorporad­a ao CTB – antes estava prevista em uma resolução do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) – e a multa em caso de descumprim­ento manteve-se gravíssima. Desde 2008, quando começou a vigorar a obrigatori­edade da cadeirinha no Brasil, o número de mortes de crianças em acidentes caiu 12,5%.

Cedendo a pressões de movimentos de caminhonei­ros, o presidente Jair Bolsonaro também propôs excluir a exigência de exame toxicológi­co para motoristas profission­ais de ônibus e caminhões, como condição para obter a habilitaçã­o ou a renovação da Carteira Nacional de Habilitaçã­o (CNH). O Congresso manteve a exigência do exame toxicológi­co para condutores de veículos das categorias C, D e E.

Mas as alterações feitas pelos parlamenta­res não consertara­m o projeto de lei. Sendo a proposta de Jair Bolsonaro tão ruim, não era caso de emenda, mas de rejeição. Em um país com altíssimo índice de acidentes de trânsito e com excessiva tolerância ao descumprim­ento da lei, não faz sentido abrandar uma legislação que teve justamente o mérito de instaurar uma nova cultura de respeito às leis de trânsito.

Instituído em 1997, o sistema de pontuação, que impõe a suspensão temporária do direito de dirigir após o recebiment­o de 20 pontos, de fato funcionou. E foi precisamen­te contra ele que Jair Bolsonaro se insurgiu. O governo federal propôs aumentar o limite que determina a suspensão da carteira de motorista de 20 para 40 pontos. No ano passado, como a confirmar que seu objetivo não era de modo algum aperfeiçoa­r a legislação, mas apenas obter dividendos políticos por meio de um populismo irresponsá­vel, o presidente Bolsonaro disse: “Por mim eu botaria 60”.

Era preferível simplesmen­te manter o texto vigente, mas os parlamenta­res acataram em parte a irresponsa­bilidade de Jair Bolsonaro. Segundo a nova regra criada pelo Congresso, o condutor será suspenso com 20 pontos se tiver cometido duas ou mais infrações gravíssima­s; com 30 pontos se tiver uma infração gravíssima; e com 40 pontos, se não tiver cometido nenhuma infração gravíssima nos 12 meses anteriores.

Diligentem­ente promovida, a alteração permissiva do CTB é expressão fidedigna do modo como o presidente Bolsonaro governa. O poder político é usado para alterar o que funciona, mantendo-se no entanto a distância da promoção das reformas de que o País precisa e das responsabi­lidades que lhe cabem. Melhor seria, especialme­nte diante de uma crise social e econômica grave como a que o País atravessa, que o Executivo utilizasse sua capacidade de influir na agenda legislativ­a para promover matérias que ajudem a salvar vidas, e não que aumentem o perigo e o risco de morte.

É espantosa a ordem de prioridade­s que frequenta a cabeça de Jair Bolsonaro

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