O Estado de S. Paulo

Argentina espionou parentes de mortos em submarino

Kirchneris­mo aponta monitorame­nto ilegal a famílias de marinheiro­s do San Juan, que explodiu no fundo do mar em 2017 com 44 pessoas

- BUENOS AIRES

Nos tensos meses após o desapareci­mento de um submarino com 44 tripulante­s em 2017, o serviço de espionagem da Argentina investigou ilegalment­e as famílias deles, disse ontem a atual diretora da agência. Autoridade­s de espionagem disseram que o órgão descobriu três discos rígidos mostrando que as atividades e as comunicaçõ­es dos parentes eram monitorada­s na cidade litorânea de Mar del Plata, a partir de onde o submarino operava.

As acusações fazem parte de uma investigaç­ão mais ampla sobre a espionagem na gestão do ex-presidente de Mauricio

Macri (2015 a 2019). Segundo a diretora da agência, Cristina Caamaño, o monitorame­nto não foi “ordenado nem autorizado por um juiz” e foi “ilegal”.

“Não estamos falando de terrorista­s nem do crime organizado, e sim de um grupo de parentes que tentavam localizar seus entes queridos presos no submarino”, disse Cristina em entrevista coletiva. “Trata-se de um perverso caso de espionagem”, afirmou. “O governo deveria oferecer-lhes respostas, e não espionar a conduta dos parentes.”

Acusações sobre o uso da Agência Federal de Inteligênc­ia (AFI) para monitorar opositores são antigas. Logo que assumiu, o presidente Alberto Fernández incumbiu Caamaño de reformar o órgão, que foi criado por Juan Domingo Perón, em 1946. Em certo momento, a AFI teve mais de 20 mil agentes infiltrado­s na imprensa, em partidos e até na igreja. Há denúncias de que o aparato foi usado amplamente nas gestões de Carlos Menem (1989- 1999), Néstor e Cristina Kirchner, que juntos ficaram no poder de 2003 a 2015, e, por fim, na administra­ção de Macri.

Caamaño disse ter remetido suas descoberta­s a um promotor, que decidirá se fará uma denúncia formal à Justiça. Alguns parentes disseram que exigirão punição. “Alguém precisa ser preso por causa disso”, disse Andrea Mereles, cujo marido, Ricardo Gabriel Alfaro Rodríguez, estava a bordo do submarino. “É imperdoáve­l.”

Membros do governo do expresiden­te já tinham negado as acusações de que a agência era usada para fins políticos. Nem Macri ou o ex-diretor da agência, porém, comentaram as acusações específica­s de espionagem contra parentes dos marinheiro­s.

Clima hostil. Após o desapareci­mento da embarcação, o clima entre o governo Macri e os parentes dos tripulante­s do San Juan foi piorando. Alguns montaram um acampament­o improvisad­o diante da Casa Rosada, sede do governo em Buenos Aires, na tentativa de obter respostas.

Os familiares dos marinheiro­s suspeitava­m há anos da espionagem ilegal. Segundo eles, seus celulares apresentam falhas no funcioname­nto e as autoridade­s pareciam estar sempre um passo à frente, aparenteme­nte sabendo onde seriam realizados os protestos e quais perguntas fariam aos representa­ntes do governo.

Isabel Polo, irmã de Daniel Alejandro Polo, 32 anos, um dos marinheiro­s a bordo do San Juan, disse ter pensado que alguém tinha invadido seu celular, que começou a reiniciar sozinho, perdendo mensagens e imagens. “Exigíamos respostas e a resposta deles foi nos seguir e nos espionar”, disse. “É muito desaforo.”

Essas suspeitas dos parentes eram justificad­as, disse Cristina, revelando que a agência tinha fotos de agentes seguindo parentes dos marinheiro­s e evidências de investigaç­ão da sua atividade nas redes sociais.

Os documentos achados agora tinham data de 2018 e 2019, o que significa que a espionagem continuou mesmo após o submarino naufragado ter sido localizado. O San Juan desaparece­u durante uma patrulha de rotina no litoral da Patagônia, no dia 15 de novembro de 2017. Desde o início, a busca chamou a atenção de todo o mundo, no que foi considerad­o o maior acidente fatal com submarinos em quase duas décadas.

Os esforços para localizar o San Juan envolveram militares de 18 países e uma das maiores missões de busca marítima da história recente, com cerca de 4 mil homens, 28 navios e nove aeronaves. As primeiras notícias não vieram da Marinha argentina, mas do governo americano, que apontou uma forte explosão nas profundeza­s do Oceano Atlântico perto de onde o submarino viajava depois de sua última comunicaçã­o recebida. / NYT, TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

 ?? MARINA DEVO/REUTERS-17/11/2018 ?? Indignação. Parentes de marinheiro­s que estavam no San Juan protestam em frente à base da Marinha, em Mar del Plata: alguns relataram problemas com funcioname­nto do celular
MARINA DEVO/REUTERS-17/11/2018 Indignação. Parentes de marinheiro­s que estavam no San Juan protestam em frente à base da Marinha, em Mar del Plata: alguns relataram problemas com funcioname­nto do celular

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil