O Estado de S. Paulo

LEITURAS DE FÔLEGO

Isolamento ajuda a tirar grandes títulos da estante.

- Júlia Corrêa

Stendhal, escritor francês do século 19, levou 53 dias para escrever um de seus mais famosos romances, A Cartuxa de Parma. Em contrapart­ida, há quem leve bem mais do que isso para conseguir lê-lo até o fim. Tido como um dos precursore­s do realismo, o autor não poupa os leitores de suas minuciosas descrições. Ciente dessa dificuldad­e, a servidora pública Marília Rodrigues, de 35 anos, aproveitou a quarentena para “enfrentar” a obra-prima do mestre francês. Não foi a única: o período de isolamento social se tornou propício para tirar títulos como esse da estante.

“O livro tem 600 páginas, que nunca me animaram muito por eu saber que levaria bastante tempo para terminar se ficasse lendo somente à noite, quando chegasse em casa do trabalho. Com a quarentena, eu consegui ler por mais horas”, conta. Para facilitar a leitura, Marília aproveitou a divisão dos capítulos, com cerca de 20 páginas cada, dedicando-se a um ou dois por dia.

Por se passar na Itália, a servidora leu a obra em busca de descrições das paisagens do país, como uma forma, segundo ela, de “matar a vontade de viajar”. No entanto, se surpreende­u ao ver que se tratava de um romance histórico bastante denso. “Não posso dizer que me arrependi, mas pelo menos me senti forte o suficiente para encarar qualquer outra obra realista”, brinca.

Professor de literatura na Universida­de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Sergius Gonzaga avalia que é natural que, hoje, as pessoas sintam dificuldad­e ao enfrentar velhos modelos literários do século 19. “Isso tem relação com o nosso presente, em que tudo é muito rápido e intenso. Nosso olhar se torna mais apto a captar uma soma grande de informaçõe­s, mas sempre em curto tempo. Ler os clássicos exige uma disponibil­idade.”

Literatura russa. Conhecido por seus extensos romances, o russo Liev Tolstoi ganhou a atenção do procurador da Fazenda Bruno Menegat, de 27 anos, que aproveitou a quarentena para ler Guerra e Paz. Segundo ele, a experiênci­a foi uma forma de aplacar a ansiedade diante da falta de perspectiv­a quanto ao fim da pandemia. Formado há cinco anos, Bruno conta que “andava afastado” da literatura desde o fim da faculdade de Direito, priorizand­o leituras históricas. Unindo essas duas áreas, decidiu aventurar-se nas cerca de 1.400 páginas do romance ambientado no período em que a Rússia foi invadida por Napoleão Bonaparte.

“Eu já tinha lido Anna Karenina e alguns contos de Tolstoi. Mas Guerra e Paz me afastava pelo tamanho, por ser um monumento. Acabava procrastin­ando, mesmo gostando do autor”, relata ele, que se surpreende­u ao concluir o livro antes do esperado. “Eu pensava que só terminaria no fim da pandemia, mas foram três meses de leitura. Eu tentava ler diariament­e, e a grande vantagem é que os capítulos são curtos, então era um convite para ler sempre um pouquinho.”

Bruno considera que uma das qualidades do escritor russo é fazer de um livro extenso algo “nunca cansativo”. “Você vai criando intimidade com os personagen­s, entendendo suas qualidades e seus defeitos. As descrições são tão reais, tão humanas, que você fica em dúvida se é uma investigaç­ão histórica ou um romance.” Sua próxima leitura deve ser uma versão em graphic novel de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. A escolha pelo formato é uma forma de driblar as dificuldad­es de ler o clássico da literatura brasileira – o que já o levou a ler também uma versão em HQ de Moby Dick, de Herman Melville.

Já Rafaela Pechansky, de 28 anos, dedicou-se a Anna Karenina. Ela conta que, no início da quarentena, não estava conseguind­o aproveitar o tempo livre para se concentrar em obras literárias. “Eu não conseguia fazer nada além de ler sobre pandemia e doenças, até que entendi o que estava acontecend­o ao meu redor e relaxei.” Jornalista de formação, ela atua como coordenado­ra de produto de um clube de livros, o que demanda que leia muitas obras durante o trabalho. Assim, depois de recuperar seu foco, decidiu aproveitar o tempo livre nos fins de semana para cumprir antigas metas pessoais

MODELO LITERÁRIO DO SÉCULO 19 PODE SER UM DESAFIO PARA O OLHAR IMEDIATIST­A ATUAL

‘PENSAVA QUE IRIA PENAR COM A LITERATURA RUSSA, MAS ACHEI O LIVRO MARAVILHOS­O’

de leitura. Segundo Rafaela, o romance a “encarava” desde 2018. Ao longo de um mês e meio da quarentena, finalmente conseguiu concluí-lo. “Pensava que iria penar com a literatura russa, mas achei o livro maravilhos­o. Só fluiu menos do que eu esperava porque eu parava para anotar trechos. Eram pausas quase filosófica­s”, brinca ela, que agora pretende se aventurar em outro livro denso, mas de literatura contemporâ­nea: Graça Infinita, de David Foster Wallace, de 1.144 páginas.

Contemporâ­neos. De fato, nem só os clássicos impõem desafios. A relações-públicas Luiza Adas, de 23 anos, revela que, da primeira vez que tentou ler o romance A Elegância do Ouriço, há quatro anos, sentiu-se intimidada pelas reflexões existencia­is apresentad­as pela autora, a francesa Muriel Barbery. Ela explica que, durante a infância, era difícil se concentrar para ler e que vem tentando mudar isso. Assim, interrompe­r a leitura foi uma forma de evitar a repetição do “trauma”.

O professor Sergius Gonzaga ressalta que, além da extensão, uma dificuldad­e comum aos leitores envolve os romances que são “por si mesmos complexos”. Um exemplo seria a obra de Thomas Mann. Desde o ano passado, Sergius organiza um evento em que escritores e professore­s compartilh­am suas experiênci­as de leitura. Segundo ele, um livro sempre apontado pelos convidados como “intranspon­ível” é A

Montanha Mágica, do escritor alemão. “Além de ser enorme, é um romance de exposição de ideias sobre a vida, a morte, a arte”, explica Sergius, destacando que livros que trazem grandes debates e discussões teóricas podem mesmo intimidar.

Nesse sentido, o professor sugere que o leitor faça, em primeiro lugar, um esforço de compreensã­o daquilo que não está entendendo e tente ir adiante. Em sua visão, “ler é uma aventura em que estamos trilhando um caminho que não sabemos bem qual é, que é movediço, pantanoso, mas depois de um tempo podemos vislumbrar o sentido final.”

Esse esforço acabou marcando a quarentena de Luiza, que decidiu dedicar-se a livros aos quais não estava habituada. “Neste período de isolamento social, pensei que seria uma forma de trazer novas realidades, conhecer novas pessoas por meio dos personagen­s.” Na sua lista, entraram até mesmo títulos do período escolar. “Me peguei lendo

Ana Terra, do Érico Veríssimo, que já tinha lido, mas sem a mesma profundida­de. Estou tentando lançar um olhar mais carinhoso, ir aos poucos.”

Foi assim que decidiu retomar, desta vez com êxito, A Elegância do Ouriço. “Quando você volta a uma leitura que inicialmen­te não te deixou confortáve­l, fica bastante receoso, mas quis enfrentar o desafio. Uma personagem do livro é zeladora de um prédio em Paris e descreve os moradores do local. Mesmo que a história não seja sobre isolamento, tracei um paralelo na minha cabeça, como se eu estivesse conhecendo pessoas também isoladas”, conta Luiza.

Já o estudante Caio Oliveira, também de 23 anos, decidiu dedicar seu tempo à leitura de outra obra contemporâ­nea: a Tetralogia Napolitana, de Elena Ferrante. “Comprei o primeiro volume há três anos e li boa parte na época, mas não terminei.” Com a quarentena, conseguiu finalizar os quatro volumes em menos de dois meses. “É uma leitura muito fluida e agradável.”

Em compensaçã­o, ao tentar recuar para um romance emblemátic­o do modernismo – Ulisses, de James Joyce –, não encontrou a mesma fluidez. “A dificuldad­e principal, para mim, foi o estilo de Joyce. É uma escrita muito intrincada, com muitos devaneios. É um livro que exige a leitura de um mesmo trecho diversas vezes.” Caio decidiu interrompe­r a leitura, mas afirma que pretende voltar à obra no futuro. “Agora sei que é uma leitura que exige dedicação quase exclusiva.”

Para Sergius, os leitores precisam armar-se para enfrentar essas novas tentativas. Além da dedicação mencionada por Caio, isso inclui a busca por informaçõe­s sobre o contexto da obra e seu autor. Na visão do professor, ler um livro como Ulisses sem qualquer referência é “como olhar uma obra de Picasso pela primeira vez sem informaçõe­s sobre a pintura moderna”.

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LUIZA ADAS Retorno. Luiza retomou ‘A Elegância do Ouriço’, que havia abandonado há quatro anos
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BRUNO MENEGAT Fôlego. Bruno concluiu clássico russo antes do esperado
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RAFAELA PECHANSKY Meta. Rafaela planejava ler ‘Anna Karenina’ desde 2018

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