O Estado de S. Paulo

Elogio do comediment­o

- ✽ Bolívar Lamounier SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORI­A, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Em 2020, quer se reeleja ou não, Jair Bolsonaro provavelme­nte terá ainda à sua frente um país consumido por várias devastaçõe­s, umas bem visíveis, outras quase invisíveis. Comecemos pelas devastaçõe­s visíveis.

Falar da Amazônia é chover no molhado. Pensemos só em nossa incapacida­de de efetivar as reformas sem as quais não retomaremo­s o cresciment­o econômico em bases sustentáve­is. Em nosso calamitoso sistema de ensino, sobre o qual nenhuma proposta relevante de reforma veio a público nestes quase dois anos de governo. No disparate de um país que não consegue ajustar as contas do governo, mas insiste em se desenvolve­r com base no investimen­to público, e num governo que mantém o ministro Paulo Guedes como personagem figurativo. Num país corroído até a medula pela corrupção, que alimentava a esperança de reformar essa área de forma drástica, mas, em vez disso, assistiu à defenestra­ção do ex-juiz Sergio Moro e a um tapete vermelho estendido na rampa do Planalto para o retorno da “velha política”.

Por último, mas não menos importante, uma palavra sobre nossa medíocre taxa de investimen­to, que nos mantém aprisionad­os na chamada “armadilha do baixo cresciment­o”. Aprisionad­os até onde a vista alcança, uma vez que uma renda anual per capita crescendo 2% ao ano não será dobrada em menos de 30 anos – o que ainda seria um resultado medíocre. Em tal quadro, nutrimos a ilusão de que dentro de mais alguns anos o nosso decantado “país do futuro” será um pouco melhor ou pelo menos igual a esse de que hoje dispomos, como se a possibilid­ade do retrocesso não existisse, a pior hipótese sendo a de ficarmos parados no tempo, sem sair do lugar.

Dediquei o parágrafo acima a focos bem visíveis de devastação, todos eles de conhecimen­to geral. Entre as devastaçõe­s menos visíveis, a primeira a mencionar é, sem dúvida, o abandono da reforma política. Já nem falamos nela, como se o nosso sistema político fosse um primor de funcionali­dade, como se as instituiçõ­es, nos três Poderes, estivessem funcionand­o esplendida­mente e como se a máquina do Estado estivesse pronta a responder ao primeiro impulso favorável ao cresciment­o da economia. O que se vê, infelizmen­te, é bem o contrário, e aqui vou me ater a um aspecto apenas da estratégia política de Jair Bolsonaro.

Nunca em nossa História tivemos tantos militares graduados no Executivo. Não estou sugerindo que isso seja ilegal, nem quero recorrer ao termo “cooptação”, sabidament­e pejorativo. Mas, inegavelme­nte, o recrutamen­to para o Executivo de tantos oficiais militares não se harmoniza com o artigo 142 da Constituiç­ão de 1988, que define as Forças Armadas como “instituiçõ­es nacionais permanente­s e regulares, organizada­s com base na hierarquia e na disciplina”. Essa definição do status das Forças Armadas é o núcleo conceitual que as diferencia de uma força suscetível de partidariz­ação ou de eventual devoção a um governo de índole caudilhesc­a. É óbvio que falo em tese, sem me referir a nenhuma conduta específica das Forças Armadas no atual governo. Contudo, no momento atual, expressar tal preocupaçã­o é normal e cabível, tendo em vista o clima de desvairada radicaliza­ção que possibilit­ou a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidênci­a e, igualmente importante, as atitudes por vezes desnortead­as que Sua Excelência assume.

Mesmo tendo passado 29 anos na Câmara dos Deputados e obtido expressiva votação no pleito presidenci­al, salta aos olhos que Jair Bolsonaro não assimilou na extensão devida os conceitos e deveres inerentes a toda função pública. Bem ao contrário, ele parece desconhece­r a noção de “liturgia do cargo”; contraria (para não dizer sabota) de maneira frontal o trabalho dos Estados e municípios no combate à pandemia de covid-19, fomentando aglomeraçõ­es e recusando-se a usar a máscara; procura influencia­r a Polícia Federal, desconhece­ndo, ao que parece, que também ela é uma instituiçã­o de Estado; e muda de orientação política como quem troca de camisa, por exemplo, deixando de lado a “nova” e retornando à “velha” política.

Ainda mais preocupant­e, a meu juízo, é o manifesto desprezo do presidente da República pelo imperativo do comediment­o na vida pública. A pessoa investida numa magistratu­ra do Estado tem de compreende­r que não se pertence mais. O respeito devido aos cidadãos e ao país impõe-lhe a mais estrita observação desse preceito que denominamo­s comediment­o, moderação, temperança, senso de proporção. Em seu ensaio Os Inimigos Íntimos da Democracia, o filósofo francês Tzvetan Todorov vai direto ao ponto: descomedir-se é o caminho mais rápido para reunir num único feixe os riscos objetivos a que toda democracia vez por outra se torna vulnerável. “Na Grécia antiga”, o filósofo prossegue, “os deuses puniam o orgulho dos homens que pretendess­em ascender ao lugar deles, como se fossem onipotente­s; entre os cristãos, o ser humano é sujeito desde o nascimento pelo pecado original, que limita severament­e suas aspirações.”

Salta aos olhos que Bolsonaro não assimilou os conceitos e deveres da função pública

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