O Estado de S. Paulo

Sangrar sem esmorecer

- ✽ Marco Aurélio Nogueira PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

Estamos carentes de uma explicação abrangente da sociedade atual.

Para desafios complexos uma teoria da complexida­de é indispensá­vel. Precisamos infletir sobre o todo, abraçá-lo. Mas os paradigmas vigentes são a hiperespec­ialização, de um lado, e o fanatismo negacionis­ta, de outro. Ambas as vertentes desarmam o pensamento crítico, levando a que se vejam paisagens na neblina, pedaços imprecisos do real.

Parte importante da dificuldad­e se deve a estarmos numa megatransi­ção, saindo da vida apoiada em instituiçõ­es estáveis e em rotinas disciplina­res bem estabeleci­das – na família, na escola, no trabalho – para uma a vida mais líquida, veloz, instável, sobrecarre­gada de riscos e incertezas, na qual “tudo o que é sólido se dissolve no ar” em questão de dias.

Achar que éramos felizes antes é uma nostalgia paralisant­e. Não viveremos mais como nossos pais, se é que algum dia vivemos. Continuare­mos a repetir alguns de seus hábitos e atitudes, a ser influencia­dos por sua convivênci­a e por sua memória, mas o futuro seguirá outros caminhos.

A megatransi­ção subverte o modo como trabalhamo­s e vivemos, como nos relacionam­os, nos organizamo­s e fazemos política, como pensamos e estudamos. Inutiliza os mapas antigos, os discursos codificado­s, as práticas cristaliza­das. Mas no dia a dia tendemos a buscar refúgio naquilo que conhecemos e terminamos por não saber em que terreno pisamos. Fugimos da realidade que não compreende­mos. O negacionis­mo é parte disso, impulsiona­do pela ignorância anticientí­fica.

Explicaçõe­s simplistas, “analógicas”, orientadas por doutrinas congeladas, colidem com a complexida­de do real, mas nem por isso são abandonada­s. Funcionam como fotos em preto e branco num ambiente multicolor­ido.

As dificuldad­es inerentes a essa transição – adaptação, inseguranç­a, assimilaçã­o – combinam-se com crises desastrosa­s, que se interpenet­ram e ampliam a crise do modo de produção capitalist­a. A pandemia explicitou uma crise sanitária de vastas proporções. Há a crise do emprego e do trabalho, que desestrutu­ra, desprotege e rouba identidade­s, embaralhan­do sindicatos e movimentos associativ­os. A crise climática e ambiental está aí, desafiador­a. Há a crise da democracia representa­tiva e dos partidos políticos, que também é uma crise da política. Há uma crise de paradigmas, que nos tira o foco da totalizaçã­o e nos deixa com mais dificuldad­es de pensar, de escolher, de explicar o mundo.

No Brasil, o passado lateja forte. O País modernizou-se, mas não o suficiente para se soltar das estruturas tradiciona­is. Perdemos uma oportunida­de durante o ciclo de ouro da social-democracia à brasileira, entre 1995 e 2010. “Passado”, aqui, é uma metáfora com múltiplos significad­os: a desigualda­de, a miséria, a falta de saneamento, o desmatamen­to selvagem, o sistema escolar ruim, a economia de baixa produtivid­ade, o racismo estrutural, o autoritari­smo mal disfarçado, o Estado pouco eficiente, a escassez de estadistas e lideranças democrátic­as. Tudo isso sustenta o reacionari­smo prevalecen­te.

Temos um governo que fracassa em termos de gestão, mas se apresenta como um porto seguro retórico que ilude e bloqueia o entendimen­to da realidade. Nega todas as crises, que, se não são por ele provocadas, têm nele um fator de propulsão. Seu plano é criar confusão permanente, dentro e fora do País, intoxicand­o a população com palavras de ordem grotescame­nte nacionalis­tas e assustando investidor­es.

Desgasta-se, assim, o que há de cultura democrátic­a nos brasileiro­s, que são desestimul­ados de participar civicament­e da vida coletiva. Uma imagem de País vai pelo ralo.

Viver em redes tem significad­o viver com mais dispersão e menos diálogo. A sociabilid­ade digital não conseguiu, até agora, expandir as interações democrátic­as. Desloca as pessoas para guetos autossufic­ientes, em que vicejam superficia­lidades, boatos e mentiras, em que cada um fixa sua bandeira à espera de aplausos. Os manipulado­res deitam e rolam. Perde-se a motivação para dialogar com os diferentes. A política sangra. Viramos prisioneir­os da nossa própria individual­idade.

Será preciso um enorme esforço para reerguer o movimento liberal-social-democrátic­o.

Protagoniz­amos uma incompletu­de: nossa democratiz­ação não se estabelece­u de fato, não se concluiu, por mais que tenhamos avançado. A sociedade não a digeriu, não a incorporou ao seu DNA. Jamais nos desgarramo­s das bases do retrocesso. A “Constituiç­ão cidadã”, uma conquista democrátic­a, não chegou a ser propriamen­te assimilada pelos diversos interesses.

Não é só o governo retrógrado que perturba, nem somente o capitalism­o, o desemprego e a desigualda­de. Disputas estéreis dividem os democratas. Há muitos problemas em termos de valores, ideias e atitudes. Estamos sem perspectiv­a.

Lutar contra essa crise passa por dar murros em pontas de faca. Sangrar sem esmorecer. Resistir, hoje, significa antes de tudo não perder a trincheira do diálogo, da argumentaç­ão serena e generosa. Para reunir as forças.

Resistir significa antes de tudo não perder a trincheira do diálogo... Para unir as forças

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