O Estado de S. Paulo

AMIZADE ENTRE QUATRO ÍCONES

‘One Night em Miami’, longa de estreia de Regina King e cotado à indicação para o Oscar, aborda a relação entre Muhammad Ali, Sam Cook, Jim Brown e Malcom X nos anos 60

- Mariane Morisawa

Em 25 de fevereiro de 1964, Cassius Clay surpreende­u o mundo e tornou-se campeão mundial dos pesos-pesados ao derrotar Sonny Liston. Naquela mesma noite, poucos dias antes de entrar para a Nação do Islã e virar Muhammad Ali, ele comemorou o título com o ativista e líder religioso Malcolm X, o cantor e compositor Sam Cooke e o jogador da NFL Jim Brown num pequeno motel na Flórida.

A informação sobre o encontro estava num parágrafo do livro Redempion Song: Muhammad Ali and the Spirit of the Sixties, de Mike Marqusee. Dele, saiu a inspiração para Kemp Powers escrever a peça e depois o roteiro de One Night in Miami, que virou a estreia na direção de longas de Regina King, vencedora do Oscar de atriz coadjuvant­e por Se a Rua Beale Falasse, de Barry Jenkins. “Eu brinquei com um amigo que foi como se tivesse acidentalm­ente descoberto os Vingadores negros”, disse Powers, em entrevista coletiva no Festival de Veneza, onde o filme fez sua estreia mundial. Poucos dias depois, houve o lançamento na América do Norte, no Festival de Toronto, onde foi o segundo mais votado pelo público. One Night in Miami já é considerad­o certo na lista de indicados para o Oscar do ano que vem.

Regina King estava procurando um projeto para fazer sua estreia como cineasta quando topou com o roteiro de Kemp Powers. “Eu nunca tinha visto conversas assim na tela”, afirmou a diretora, em coletiva durante o Festival de Toronto. “Eu ouvia homens negros falando sobre a experiênci­a dos homens negros. E queria fazer parte disso.” O filme se passa majoritari­amente num quarto de um hotel barato em Miami, onde os quatro amigos celebram, mas também discutem e lidam com questões pessoais – Malcolm X (vivido por Kingsley Ben-adir), por exemplo, queria deixar a Nação do Islã, mas se sente pressionad­o para conseguir a confirmaçã­o da entrada de Clay (Eli Goree) na organizaçã­o. “A palavra-chave aqui é humanidade”, disse Powers. “Humanidade, amizade, amor entre amigos que, por acaso, são homens negros. Queria mostrar esses homens icônicos e indestrutí­veis em momentos de vulnerabil­idade e de uma maneira em que a vulnerabil­idade não é uma coisa ruim. Aconteceu de verdade, e quem sabe do que falaram, mas as conversas que eles têm são as que eu tinha no alojamento da universida­de Howard com meus amigos.”

Um dos principais debates do filme acontece entre Malcolm X e Sam Cooke (Leslie Odom Jr., do musical Hamilton). O primeiro acusa o segundo de tentar agradar aos brancos, fazendo música suave e que não protesta contra o racismo – na época do filme, ainda estavam em vigor as leis de Jim Crow, de segregação racial, no sul dos Estados Unidos. E Cooke rebate dizendo que, por ser tão bem-sucedido, está produzindo outros artistas negros e oferecendo a eles liberdade financeira. “É uma questão que sempre vai existir. Quanto eu tenho de conceder para ter sucesso neste mundo que tantas vezes é hostil em relação a mim?”, disse Powers. “Tenho certeza de que os jovens talentosos e belos do elenco podem se identifica­r porque são questões passando pela cabeça deles também.”

Para os atores, interpreta­r essas figuras foi um desafio e tanto. “Minha sorte é que existe farto material de Ali”, disse Goree.

“O complicado era sua voz. Ele tinha um jeito de falar quando estava em público e outro no privado. Um quando falava de política e outro quando endereçava seus irmãos na Nação do Islã.” Odom Jr. tentou replicar ao máximo a voz aveludada de Cooke. Ben-adir precisou mostrar o lado menos severo de Malcolm X.

Sendo uma mulher negra, Regina King também entende a responsabi­lidade. “Há muita pressão quando se é o primeiro”, afirmou, referindo-se ao fato de ter sido a primeira cineasta negra americana a apresentar filme em Veneza. “Porque a oportunida­de para a segunda, terceira, quarta dependem de como a primeira se sai.” E também a de despertar conversas.

O filme ainda não estava pronto quando veio a covid-19. Mas os casos de George Floyd e Breonna Taylor, mortos pela polícia, fizeram com que One Night in Miami ganhasse urgência. Aldis Hodge, intérprete de Jim Brown, é do sul, como seu personagem. Mesmo bem-sucedido, ele sofre racismo numa cena que é uma punhalada.

“Eu fui criado com a Ku Klux Klan por perto. Nada do que está acontecend­o é novidade”, disse Hodge. “O que mudou é que quem sempre negou a existência do racismo e da brutalidad­e policial não tem mais como negar. Então este filme é uma grande oportunida­de de provocar debates para que tenhamos progresso. Porque a verdade é que não importa quanto sucesso e dinheiro tenhamos, ainda somos negros no mundo e nos Estados Unidos.”

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ABKCO FILMS Racismo. Debate sobre as questões raciais abordadas pelo filme foi impulsiona­do com as mortes pela polícia de George Floyd e Breonna Taylor

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